Xiaomi SU7: a dura realidade das montadoras

 

Claudio Milan

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“Num prazo de 15 a 20 anos, a Xiaomi pretende se tornar uma das cinco
principais fabricantes de automóveis globais”. Em outros tempos, a afirmação de
Lei Jun, fundador, presidente e CEO do Grupo Xiaomi, soaria como uma piada.
Afinal, ele está falando de uma empresa conhecida e consagrada pela produção de
smartphones. Então, do alto de sua convicção, você perguntaria: como uma
empresa de aparelhos celulares pode ter a pretensão de fazer um automóvel e,
mais do que isso, entrar para o seleto grupo de líderes mundiais do setor?

A resposta é simples e, ao mesmo tempo, complexa: é porque o mundo mudou
espetacularmente e o setor automotivo cada vez mais vai se distanciar daquela
configuração secular das montadoras que todos nós nos acostumamos a conhecer e
que, durante décadas, forneceram os carros que usamos ainda hoje. Mas o que
tudo isso tem a ver com o celular? Eu tenho certeza que você, que atua no setor
automotivo, já ouviu alguém falar que os carros estão se tornando smartphones
sobre rodas. Acredite, isso não é uma figura de linguagem. É a mais absoluta
verdade. “Se nós desmontarmos hoje um painel multimídia ou uma OBU – Onboard
Unit e analisarmos os blocos que estão ali dentro, vamos encontrar um elemento
de alta capacidade de processamento, como existe no smartphone; um sistema de
recepção de sinal de câmera, como as câmeras de ré ou outras que ajudam na
condução; sistema de áudio de altíssima qualidade, com comando de voz; e, o
ponto crucial, a conectividade – a conectividade celular hoje é indispensável
para tudo isso. Novas propostas de valor estão sendo ofertadas aos consumidores
graças a esse advento do smartphone sobre rodas”, detalhou o especialista José
Palazzi, diretor da Qualcomm, indústria de alta tecnologia que fornece recursos
de conectividade para as montadoras, durante recente participação no podcast
Diálogo Automotivo, da A.TV, o canal de conteúdo em vídeo no Youtube do
aftermarket automotivo.

Então começamos a entender melhor a analogia entre os smartphones e os
carros. Mas, isso ainda não explica como um fabricante de celulares desenvolveu
expertise para fabricar automóveis. Fique tranquilo, não vamos deixar essa
questão sem resposta. Para isso, recorreremos mais uma vez ao Palazzi: “Essa
proliferação tecnológica permitiu que novos players aparecessem e, agregando
isso ao fato de o veículo 100% elétrico ter uma quantidade de peças móveis
menor, há uma natural tendência de fabricação – óbvio que eu respeito muito
todos os fabricantes em todas as suas vertentes, tenho grande admiração por
aqueles que têm às vezes séculos de uma qualidade incrível, mas também observo
com respeito os novos entrantes, que têm tido competência de fazer bons
projetos e escolher bons supridores de tecnologia”.

ARQUITETURA

Para fechar essa equação, é importante relembrar as condicionantes que ao
longo de décadas foram determinantes para a fabricação de um automóvel:
essencialmente motor e transmissão. “A gente sempre comprou carro confiando no
motor e no câmbio. As montadoras adquiriram a capacidade de engenharia para
construir motores e câmbios confiáveis. Só podia fabricar carro quem tinha
motor e câmbio”, expôs Gerson Prado, CEO da Nexus Internacional, em sua
palestra de inauguração da feira Autop 2022, em Fortaleza (CE). Só que o carro
elétrico não tem powertrain. “Muda tudo. O carro elétrico tem rodas, chassi –
que são as baterias – e um motor elétrico. O que vai definir o carro daqui pra
frente? Software. E com o baita mercado de 5 trilhões que teremos, as
montadoras desesperadamente saíram com investimentos bilionários em
desenvolvimento de software para veículos elétricos”, expôs com clareza o
executivo. Aí está! Agora a equação se fecha com perfeição. Para fabricar um
carro, a indústria vai precisar de fornecedores de baterias, motores elétricos
e componentes undercar. O restante – e mais importante – é definido pelo
software. E disso a Xiaomi entende. Assim nasceu o SU7, o smartph…, quer
dizer, o carro elétrico da Xiaomi, que começa a ser vendido em 2025. “Muda o eixo
do poder de fabricação do carro no mundo, que era Estados Unidos e Europa, mas
vai se movimentar para a China. E olha quem está entrando no carro elétrico:
Sony, Huawei, Google, Microsoft e Apple. Todas terão carros elétricos porque
eles serão definidos por software e esses caras dominam tudo de software. Já
que o carro ficou fácil de fazer, um monte de gente nova está fabricando ou vai
fabricar carro elétrico”, sentenciou Gerson Prado em sua apresentação. Aquilo
que o executivo da Nexus disse em 2022 já é, portanto, realidade. “Tem mudado
substancialmente a forma como as pessoas selecionam seus veículos. Hoje, quando
vão a uma concessionária – e eu ouço isso de montadoras – elas não perguntam
mais com tanta veemência qual é a potência do motor. A pergunta mais comum é o
que roda no multimidia, se ele é atualizável, que Android está ali dentro, se
ele roda sem fio, ou seja, se posso entrar com meu smartphone no bolso e
sincronizar as informações sem a necessidade de uma conexão por cabo”, contou
José Palazzi.

Então prepare-se para um mundo totalmente novo. As marcas de automóveis com
que nos acostumamos por décadas estão prestes a enfrentar uma concorrência que
jamais poderiam imaginar num passado não muito distante. E, por incrível que
pareça, esses novos competidores chegam capacitados a oferecer um carro até
melhor do que quem passou a vida inteira aprendendo a projetar e fabricar
automóveis. Bom, se de fato em 15 ou 20 anos a Xiaomi se tornar uma das cinco
maiores indústrias de automóveis do mundo, alguém muito famoso e conceituado
até agora terá ficado para trás.

Pronto pra briga: o carro da Xiaomi

Os veículos elétricos Xiaomi se sustentarão em cinco tecnologias principais
estabelecidas pela fabricante: e-motor, bateria, fundição, piloto autônomo e
cabine inteligente. Vejam como estes pilares em grande medida se alinham com
todo o raciocínio desenvolvido em nosso texto até aqui. Vamos, afinal, trazer
alguns detalhes sobre o carro – ou smartphone sobre rodas – que concretizará
uma das mais disruptivas transformações da indústria de veículos desde 1886,
quando os alemães Gottlieb Daimler e Karl Benz apresentaram os primeiros
veículos aceitos como automóveis. Posicionado como um sedã de alta performance
ecológica – outro sintoma dos novos tempos – o SU7 representa, segundo o CEO da
Xiaomi, um passo crucial em direção ao fechamento do ciclo do ecossistema
inteligente Humano x Carro x Casa. Repare que tal afirmação foge totalmente de
tudo o que sempre ouvimos por ocasião da apresentação de modelos lançados pelas
montadoras tradicionais. A Xiaomi defende que os veículos elétricos
inteligentes caminham rumo à integração da indústria automobilística com
eletrônicos de consumo e ecossistemas inteligentes, um passo necessário para a
evolução da indústria, ainda segundo a fabricante. A cobertura do ecossistema
se estende a mais de 95% dos cenários diários dos usuários, permitindo que a
inteligência sirva intricada – mente a cada indivíduo. Os conceitos são tão
revolucionários que quase estou esquecendo de falar do carro. Então vamos lá.

Começando pelos denominados e-motores, desenvolvidos e fabricados
independentemente, são identificados como HyperEngine V6, V6s e HyperEngine
V8s. Já dá pra perceber que eles têm a pretensão de entregar rendimento
compatível com similares a combustão de 6 e 8 cilindros em V. O HyperEngine V8s
gira a impressionantes 27.200 rpm, tem 425 kW de potência de saída e torque
máximo de 635 N/m.

Sem querer exagerar aqui nas informações técnicas, a Xiaomi destaca ainda a
tecnologia de célula invertida, a intercamada elástica multifuncional e um
sistema de fiação minimalista – resultando em eficiência de integração de
bateria de 77,8%, a mais alta entre as baterias CTB em todo o mundo, uma
melhoria geral de desempe – nho de 24,4% e uma redução de altura de 17mm, com
capacidade máxima de bateria de até 150 kWh e alcance teórico de recarga CLTC
superior a 1200 km.

Uma rápida passada no quesito fundição, tido como um diferencial: a empresa
apresentou o cluster Xiaomi Hyper Die-Casting T9100 autodesenvolvido e um novo
material de liga de fundição sob medida, Xiaomi Titans Metal. O cluster permite
à fabricante pesquisar simultaneamente fundição em grande escala e materiais. E
também propiciou um feito importante com o underbody traseiro integrado 72
componentes em um, reduzindo as juntas soldadas em 840, diminuindo o peso total
do carro em 17% e baixando as horas de produção em 45%.

Mas, voltando ao mundo normal, e para quem vai dirigir? Vai necessariamente
entrar na Cabine Inteligente EV que oferece um console central de 16,1
polegadas 3K, um display HUD head-up de 56 polegadas, um painel de instrumentos
giratório de 7,1 polegadas e dois suportes de extensão de encosto de assento
que permitem a montagem de dois dispositivos tablet. Um chip para carros com po
– der de computação de IA possibilita experiência interativa final com a
interligação de cinco telas diferentes. Em termos de integração de hardware, o
SU7 suporta mais de 1000 dispositivos domésticos inteligentes Xiaomi para
integração sem esforço com o veículo, pemitindo descoberta automática, acesso
sem senha e capacidade de configurar cenários de automação, criando um robusto
ecossistema CarIoT.

Outro entre os cinco pilares é o Piloto Automático Autônomo. Aqui já
entramos na tecnologia de software inteligente, em que a fabricante está muito
à vontade. São três recursos em destaque: Tecnologia Adaptativa BEV, Modelo
Fundacional de Mapeamento de Estradas e Tecnologia de Rede de Ocupação
Super-Res. A primeira invoca algoritmos de percepção com base no cenário e, com
alcance de reconhecimento de 5 cm a 250 m, garante visibilidade mais ampla em
cenários urbanos, visão estendida em cenários de alta velocidade e mais
precisão em cenários de estacionamento. O Modelo Fundacional de Mapeamento de
Estradas não só reconhece as condições da via em tempo real e muda
inteligentemente para uma trajetória de direção mais adequada, como também pode
navegar suavemente em cruzamentos complexos sem depender de mapas de alta
definição, graças ao aprendizado de cenários e hábitos do motorista. Em termos
de reconhecimento de obstáculos, a Tecnologia de Rede de Ocupação Super-Res
simula todos os objetos visíveis, como superfícies curvas contínuas. Isso
melhora a precisão de reconhecimento para até 0,1m. Além do Modelo Fundacional
de Mapeamento de Estradas, a Xiaomi também desenvolveu independentemente o
primeiro “Modelo de IA de Sensação e Tomada de Decisão de Ponta a Ponta” para
estacionamento automatizado que proporciona observação em tempo real e ajuste
dinâmico ao estacionar em cenários desafiadores, como estacionamentos que
incluem elevadores.

Já o ecossistema Xiaomi CarIoT é totalmente aberto a terceiros, apresentando
interfaces padronizadas, extensos padrões de protocolo de comunicação e
soluções de retrofit leves para dispositivos existentes. Lei Jun afirmou que a
etapa final dos veículos elétricos inteligentes é a fusão de avanços
tecnológicos e a integração perfeita das necessidades do usuário e de seus
veículos, onde dirigir se torna intuitivo. O ecossistema inteligente Human x
Car x Home permite colaboração e evolução mútua entre indivíduos, dispositivos
e serviços inteligentes dentro do ecossistema. Aproveitando a conectividade
cruzada HyperConnect entre dispositivos, o Xiaomi HyperOS integra perfeitamente
mais de 200 categorias de produtos, incluindo o Xiaomi EV. Mas, afinal de
contas, estamos falando sobre um carro ou um smartphone? Sinceramente, não sei
mais dizer. Nada do que você leu até aqui nos remete àquilo que aprendemos
sobre os automóveis. Para encerrar este texto no campo da familiaridade que
criamos – e que agora teremos de rever completamente – com o mundo das quatro
rodas, fica uma informação que hoje talvez seja apenas uma anotação nostálgica.

O Xiaomi SU7 Max acelera de 0 a 100 km/h em quase inacreditáveis 2,78
segundos e atinge a velocidade máxima de 265 km/h.

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