Redação Novo Meio
As novas tendências da mobilidade vêm sendo motivo de permanentes debates entre os formadores de opinião do Aftermarket Automotivo. Compartilhamento de veículos, carros por assinatura e uso do transporte público são temas que vêm merecendo reflexões por partes dos estrategistas não apenas do mercado de reposição, mas do próprio setor automotivo como um todo, posto que as transformações também impactam de forma significativa os negócios das montadoras de veículos.
No caso específico das empresas que compõem a cadeia de comercialização e aplicação de autopeças, a pauta gira em torno de questões como a chamada “pejotização” da frota e as consequentes transformações nos processos de aquisição de peças de reposição e a realização dos serviços de manutenção.
O IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada apresentou recentemente um abrangente trabalho que avalia a migração do transporte coletivo para o individual nas últimas décadas. O estudo Tendências e Desigualdades da Mobilidade Urbana no Brasil: o Uso do Transporte Coletivo e Individual apresenta um diagnóstico de como o uso do transporte individual motorizado e do transporte coletivo tem evoluído desde o início dos anos 2000 nas cidades brasileiras a partir de dados sobre mudanças no padrão de consumo de bens e serviços de transporte, o aumento de renda das famílias, além da evolução dos custos de transporte urbano, da demanda por transporte público e da frota de veículos no país nos últimos 20 anos. “Em todas as dimensões analisadas, os dados apresentam uma trajetória gradual e persistente de substituição do consumo de transporte coletivo pelo individual motorizado, principalmente entre as classes médias e baixas, e nas cidades de médio e pequeno porte”, introduz o trabalho.
Por fim, o estudo mostra como a crise econômica e de saúde pública gerada pela pandemia da covid-19 teve um profundo impacto na redução dos níveis de mobilidade urbana e, em particular, na intensificação da queda do número de passageiros do transporte público ao longo de 2020. “Com isso, a crise do novo coronavírus deve aprofundar o ciclo vicioso de perda de passageiros e elevação de tarifas no transporte público e acentuar a tendência histórica de substituição do transporte coletivo pelo individual nas cidades brasileiras”, acrescenta o descritivo do trabalho.
Crescimento do transporte individual ocorre em todas as faixas de renda
Em 2008 e em 2017, segundo o estudo, as famílias brasileiras comprometiam cerca de 14% da renda com gastos em transporte. Ou seja, o transporte urbano estava entre os principais componentes do gasto das famílias em seu consumo cotidiano, sendo superado mais recentemente apenas pelos gastos com habitação, em 2017-2018. “Essa é a média de todas as áreas urbanas do Brasil. Obviamente, isso vai variar muito entre classes sociais”, comenta o pesquisador Rafael Pereira.
O estudo observou nos últimos anos uma queda do consumo do transporte coletivo em todas as faixas de renda e um aumento do transporte individual para todas as faixas de renda. “Chama a atenção o fato de que, especialmente para a população mais pobre, há uma inflexão muito maior. A redução do consumo do transporte coletivo é mais expressiva entre a população de baixa renda e o aumento de transporte individual também é muito marcante entre esse mesmo grupo”, diz Pereira.
Carolina Baima Cavalcanti, coordenadora-geral de Gestão de Empreendimentos do Ministério do Desenvolvimento Regional, avalia que o estudo trouxe a confirmação, em números, de um fenômeno que já vinha sendo percebido há tempo, seja por meio da observação da realidade, de outros estudos anteriormente elaborados, ou nas demandas recebidas diariamente pela pasta. “A leitura da realidade em dados quantitativos não é pouca coisa, se considerarmos que o setor de mobilidade urbana é diferente das demais políticas setoriais urbanas nacionais, sobretudo aquelas tratadas no âmbito do MDR, como habitação e saneamento. A mobilidade urbana sofre de uma grande escassez de dados estruturados, periódicos, o que leva a um planejamento deficiente”, pondera.
Cavalcanti ressalta que o estudo também é muito importante para que se possa avaliar a atual política de mobilidade urbana. “O primeiro ponto a ser destacado é que os padrões de deslocamento mudaram nos últimos 20 anos, com a substituição do transporte coletivo pelo individual motorizado. Em segundo lugar, houve uma piora nas condições de mobilidade. E essa piora foi distribuída de forma desigual, de acordo com a renda, gênero e raça, com evidente prejuízo à população mais vulnerável. E, por último, que a covid-19 evidenciou a fragilidade do transporte coletivo a oscilações de demanda”, conclui.
Gasto das famílias com transporte coletivo e individual motorizado
Com base nas últimas três edições da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizadas pelo IBGE, o estudo Tendências e Desigualdades da Mobilidade Urbana no Brasil: o Uso do Transporte Coletivo e Individual mostra como o perfil do gasto das famílias com bens e serviços de transporte urbano vem mudando ao longo do tempo e como ele varia entre grupos socioeconômicos e entre áreas metropolitanas do Brasil.
A figura 1 mostra o peso do transporte urbano e de outros componentes de gasto no orçamento das famílias entre 2008 e 2017. Nesse período, as famílias das áreas urbanas comprometiam entre 13% e 14% do seu orçamento com gastos em transporte urbano. Esse valor teve pequena queda no período, e os gastos com transporte se mantiveram como uma das categorias de maior gasto das famílias residentes nas cidades do país.
De acordo com os resultados da edição mais recente da POF (2017-2018), 70,4% das famílias brasileiras possuem algum gasto com transporte urbano. Desse montante, menos da metade (45,5%) das famílias apresenta despesas com transporte coletivo, ao passo que 71,4% têm gastos com transporte individual motorizado. Segundo esses dados, as famílias brasileiras com algum tipo de despesa com transporte urbano gastam em média cerca de 17,7% do seu orçamento familiar com transporte urbano, sendo 5,9% em transporte coletivo e 11,8% em transporte individual.
Ao comparar esses valores com a edição anterior da POF, realizada em 2008 observa-se que, embora a proporção de famílias com despesas em transporte urbano tenha se mantido praticamente estável, ocorreram mudanças significativas na composição do gasto com transporte no período de dez anos entre as pesquisas. Entre 2008 e 2017, a proporção de famílias que utilizavam transporte coletivo teve uma queda de 18,9 pontos percentuais ao passo que houve um aumento de 16,1 pontos percentuais na proporção de famílias que utilizavam transporte individual.
Peças e manutenção respondem por 29% dos gastos com transporte individual
O estudo apurou que entre os 76% dos brasileiros que possuem algum gasto com transporte individual, essa despesa se concentra em gastos com combustível e peças e manutenção, que respondem, respectivamente, por 62% e 29% do gasto total com transporte individual, sem contar os gastos de compra e financiamento de veículos. Verifica-se que cerca de 9% dos usuários de transporte individual fazem uso substancial de serviços de mobilidade privada como táxi ou empresas de transporte por aplicativo, concentrando mais de 80% do seu gasto com transporte nesses serviços.
Nesse âmbito, o surgimento relativamente recente de empresas de transporte por aplicativo, como Uber, Cabify e 99 ainda tinha participação muito pequena no padrão de mobilidade urbana no Brasil em 2017-2018. Apenas 2,4% das famílias no país fizeram algum gasto com esses serviços de aplicativos no mês de referência da pesquisa. Naquele período, o usuário brasileiro fazia em média seis viagens de aplicativo por mês, com um custo mensal de aproximadamente R$ 22 por viagem. Esses resultados, no entanto, confirmam uma longa tendência de diminuição do uso de transportes coletivos em troca do aumento do uso transporte individual nas cidades brasileiras. Essa mudança no padrão de consumo das famílias já vem sendo observada no Brasil pelo menos desde os anos 1980 (Stivali e Gomide, 2007; Carvalho e Pereira, 2012) e segue um padrão comum à maioria dos países latino-americanos (Gandelman, Serebrisky e Suárez-Alemán, 2019). Embora a substituição do transporte coletivo pelo individual seja observada em todas as faixas de renda nas últimas duas décadas, essa tendência tem sido consideravelmente maior entre as famílias mais pobres. Entre 2002 e 2017, a parcela de famílias com despesas em transporte coletivo caiu 21 pontos percentuais para o decil mais pobre e 18 pontos percentuais para o decil mais rico. No mesmo período, a proporção dos gastos com transporte individual aumentou 33 pontos percentuais entre as famílias de mais baixa renda e apenas 4 pontos percentuais entre os mais ricos.