Lucas Torres [email protected]
Qual é a melhor receita para coibir a sonegação fiscal semdificultar ainda mais a atividade empreendedora no país? Para os players que vivem a realidade na prática, e boa parte dos teóricos, a resposta definitivamente não passa pelos mecanismos utilizados atualmente.
Adotado de forma massiva pelos estados a partir do ano de 2007, sob o discurso de facilitar a fiscalização do recolhimento de tributos, o Regime de Substituição Tributária (ST) é hoje visto como uma pedra no caminho da livre concorrência e da produtividade em diversos segmentos da economia. Para compreender as razões deste descontentamento, é preciso,
antes de tudo, entender o funcionamento da ST.
À parte dos pormenores contábeis do complexo sistema tributário nacional, este regime tem como características principais a simplificação das etapas envolvidas no processo de produção e venda e a antecipação dos recursos proveniente da tributação dos lucros que virão, em tese, ser devidos para o estado no âmbito do ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulaçãode Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte
Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação). Para atender estes objetivos, a ST recorre a dois recursos primordiais:
• Cobrança de imposto na origem: com a justificativa de que fiscalizar centenas de produtores acaba sendo mais fácil do que fazê-lo com milhares de varejistas, a ST embute o imposto na origem da mercadoria. Ou seja, logo que esta sai da fábrica.
• Antecipação de impostos com base no lucro presumido: com o objetivo de evitar a sonegação na ponta, a ST projeta uma margem de lucro que será recebido pelos varejistas (com base no MVA ou IVA) na venda do produto e adiciona a este um valor no momento
da saída da indústria.
As dificuldades geradas por estas dinâmicas foram destacadas pelos representantes do aftermarket automotivo durante a Autop, feira do setor realizada entre os dias 17 e 20 de agosto de 2022, na cidade de Fortaleza (CE). Na ocasião, dirigentes de entidades como Sincopeças e Andap classificaram a ST como causa direta de questões como a guerra fiscal entre os estados, o sufocamento do capital de giro das pequenas e médias empresas e o desestímulo à regularização das operações. Para o presidente do Sincopeças-RS, Marco Antônio Vieira Machado, a natureza fragmentada do ICMS, imposto estadual ao qual a ST está vinculada, é o ponto inicial de uma série de problemas advindos do regime. “Cada estado tem uma regra. O fato de haver unidades da federação como Espírito Santo, Santa Catarina e Goiás não aderentes à Substituição Tributária, por exemplo, é o indicativo mais gritante de diferenças competitivas entre as empresas de cada unidade federativa”.
Mas, infelizmente, não é só isso. Existe uma competição entre os estados no que diz respeito à MVA – Margem de Valor Agregado, que considera a diferença do preço do produto na indústria e aquele com que ele supostamente será vendido. “Enquanto alguns estados, como o Ceará, definem esta margem na casa dos 40% outros, como o Rio Grande do Sul e São Paulo mais do que dobram este índice”, aponta Machado.
Os resultados destas variações de regime e alíquota apontados pelo dirigente gaúcho são variados e vão, segundo ele, desde erros tributários gerados pela dificuldade de entendimento da complexidade da legislação de cada local até a criação de verdadeiros ‘paraísos’ nos quais empresas de autopeças têm buscado se instalar para ganhar vantagens sobre os concorrentes. Esta preferência pelos oásis em que a Substituição Tributária já não incide sobre as operações, aliás, foi identificada por apuração exclusiva
do NVA.
Um dos maiores conglomerados de varejo e distribuição de autopeças do Brasil, a Fortbras tem sede com registro na cidade de São Paulo (SP), além de lojas espalhadas em todo o território nacional. O local escolhido para instalar o Hipervarejo, seu principal canal de e-commerce de peças automotivas, porém, foi o município de Serra, no Espírito Santo – estado onde hoje não vigora a ST.
Ao comentar a ‘guerra fiscal’ e esta estratégia adotada por varejos que vendem online, Machado salientou que um de seus efeitos mais relevantes é promover disparidade no preço de venda das autopeças. “Boa parte das empresas que vendem pela internet estão dentro destes ‘paraísos fiscais’. Ao venderem para um comprador de outro estado, elas
não são obrigadas a contabilizar a ST caso este seja pessoa física ou MEI. Então, se este consumidor final for um pequeno frotista ou cliente de uma oficina mecânica, a mercadoria não contabiliza a alíquota no seu preço”, diz o dirigente do Sincopeças-RS. Além deste, outros exemplos se espalham pela cadeia. Entre eles se destacam comportamentos semelhantes adotados por empresas voltadas à atividade de importação de autopeças registradas em cidades do estado de Santa Catarina, onde também não vigora o regime.
Substituição Tributária tem colaborado
para o sufocamento das PMEs
Embora seja uma preocupação geral do mercado, a Substituição Tributária tem sido apontada como um regime hoje especialmente perverso para a atividade das Pequenas e Médias Empresas (PMEs). De acordo com o especialista em direito tributário e ex-juiz
do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo, Celso Alves Feitosa, isso acontece por dois fatores primordiais: a inversão da ‘lei natural’ do processo econômico e sua incompatibilidadecontábil com o Simples Nacional. Sobre o primeiro ponto, Feitosa destaca os danos trazidos pelo fato de a ST contrariar a regra básica do processo produtivo,
permitindo aos governos receberem o ICMS antes da venda efetiva. “O agricultor só colhe após plantar, e isso após árdua labuta e espera; o empregado só recebe após trabalhar; a indústria só recebe, em regra, depois de produzir e vender. Mas como a lei e a Justiça dão legalidade ao regime ICMS/ST, apresenta-se a situação de inversão”, analisou o especialista.
Após apontar esta incongruência, Feitosa destaca ainda que, com este mecanismo, o legislador estadual cuidou de “buscar o imposto que estaria nos estoques dos sujeitos passivos, nos momentos em que incluídos tais e quais produtos na esfera dos contemplados
pelo rol de substituição, conquanto ausente operação presumida relativa à circulação. Tributação de produtos hibernantes”.
Para a realidade prática das empresas, este mecanismo de ‘cobrança prévia’ atua como uma espécie de dedo que puxa o gatilho daquilo que o Sebrae aponta como uma das maiores causas de falências de PMEs: a falta de capital de giro. Constituído pelos ativos circulantes que uma empresa dispõe para o pagamento de despesas e contas variáveis, o capital de
giro serve como um escudo de proteção das empresas contra situações desafiadoras como períodos de crise, recessão econômica, diminuição brusca da demanda e/ou necessidade
de empréstimos emergenciais. Neste contexto, a ST torna um varejo de pequeno ou médio porte mais vulnerável ao demandar o investimento de parte deste colchão de segurança na hora de se abastecer – sem garantia nenhuma de que irá realizar a venda ou ainda irá fazê-la com uma margem suficiente para cobrir a projeção inicial do MVA. Na visão do presidente do Sincopeças-RS, Marco Antônio Vieira Machado, este ambiente de constante pressão sobre o capital de giro das PMEs tem sido a principal causa daquilo que ele chama de
‘redução significativa da relevância destas empresas no aftermarket’.
“Hoje, infelizmente, o mercado está migrando para as mãos dos grandes players. Eu acredito que o fim da ST contribuiria para capitalizar as pequenas e médias empresas, aquelas incluídas noSimples Nacional”, opina Machado. De volta à análise de Feitosa sobre as dificuldades impostas pela Substituição Tributária às PMEs, a incompatibilidade contábil do regime com o Simples Nacional é apontada como outro ponto de pressão ao caixa destes varejistas ao obrigá-los a pagar um ICMS igual às grandes empresas, no lugar do percentual de 1,25% a 3,95% do faturamento, como é definido nas regras da modalidade. “Na prática do nosso mercado, isso faz com que mesmo empresas incluídas no Simples tenham de pagar 17% de ICMS”, comenta Marco Antonio Machado.