Mobilidade é eixo fundamental nas cidades inteligentes

Menos carros, mais mobilidade nas cidades inteligentes

Regulações e parcerias entre os setores público e privado impulsionam iniciativas de compartilhamento, eletrificação e autonomização de carros ao redor do mundo

Lucas Torres
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Êxodo rural é o termo usado para descrever o processo de migração da população do campo em direção à cidade, ou zona urbana. No Brasil, o movimento teve seu apogeu a partir da segunda metade do século XX. De lá para cá, a população urbana saltou de 70,2 para 209,3 milhões. Crescimento que, além de impressionar pelo volume, salta aos olhos também quando observado sob a ótica da proporção: se antes do êxodo a participação das pessoas que viviam na cidade correspondia a 44% do total de brasileiros, hoje representa 85%, de acordo com dados do IBGE. Em regiões como a sudeste, por exemplo, esse inchaço é ainda mais intenso, com cerca de 93% da população vivendo na área urbana, maior concentração do país, seguida pelo centro-oeste, com 90%.

Ao computar e projetar dados do planeta como um todo, o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas constatou que, em 2010, cerca de 52% da população mundial vivia nas cidades, índice que saltará para 60% em 2030 antes de crescer para 66% em 2050. No mesmo relatório, as Nações Unidas projetaram a demanda por mobilidade urbana provocada por essa escalada, prevendo que a demanda por mobilidade crescerá 36% em 2030 e outros 38% até a década de 2050.

Essa perspectiva de crescimento ainda maior da concentração populacional nas cidades se torna absolutamente assustadora no âmbito da mobilidade quando confrontada com a extrema precariedade com que as pessoas se locomovem nas grandes metrópoles já nos dias de hoje. Em seu último Censo, em 2010, o IBGE apontou que naquele ano cerca de 11% dos brasileiros gastavam mais de 60 minutos no deslocamento entre a casa e o trabalho, tempo perdido que crescia significativamente quando restrito às regiões metropolitanas: 17% na média geral; 29% no Rio de Janeiro; e 26% em São Paulo.

O esgotamento do atual sistema de mobilidade ante o inchaço das metrópoles foi identificado pelo INRIX Research, instituto que acumula mais de 500 Terabytes de dados de 8 milhões de quilômetros de estradas ao redor do planeta em um estudo que mediu o impacto monetário dos congestionamentos no Reino Unido, na Alemanha e nos Estados Unidos.

De acordo com o trabalho, esses países acumulam 450 bilhões de dólares anuais em gastos diretos ou indiretos com os congestionamentos, tendo como custo anual per capita para os motoristas 968 euros no caso dos britânicos; 1.531 euros entre os germânicos; e 1.400 dólares para os norte-americanos. Outra empresa especializada em análise de trânsito, a TomTOm Traffic estimou que, em 2050, os motoristas terão dobrado o tempo gasto atualmente nos congestionamentos na atualidade. Além disso, projeta que as poluições do ar e do som irão crescer massivamente, com os sistemas de mobilidade usando cinco vezes mais recursos naturais do planeta do que faziam em 1990.

Tudo isso, claro, se os gestores das grandes cidades insistirem no pouquíssimo eficiente modelo de mobilidade atual, algo que não deverá acontecer se forem confirmadas as tendências, sinalizações e medidas práticas dos estrategistas de políticas públicas, empresas de tecnologia e até mesmo os mais tradicionais players do mercado automotivo mundial. O futuro aponta para as cidades inteligentes.

A mobilidade e o meio ambiente: uma guinada em direção aos motores elétricos

Evolução tecnológica tem tornado a propulsão elétrica cada dia mais viável

Dados publicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam que, anualmente, 4,2 milhões de mortes prematuras ocorrem em razão da poluição do ar em todo o mundo, número que no Brasil, de acordo com o último levantamento do Ministério da Saúde, chegou a 44.228 em 2016. Além da perda de vidas, a má qualidade do ar produz severos impactos econômicos no âmbito da saúde pública. Enquanto ainda ocupava a chefia do Ministério da Saúde, Luiz Henrique Mandetta projetou um gasto de R$ 14 bilhões do Sistema Único de Saúde entre os anos de 2008 e 2019 em decorrência do problema.

Em busca de soluções que possam amenizar esse cenário insustentável, diversos países têm divulgado medidas regulatórias que bloqueiem a utilização de combustíveis fósseis em automóveis, incentivando sua substituição gradual por modelos alternativos, entre os quais se destacam os motores elétricos.

O epicentro dessas ações legislativas tem sido a Europa, onde nações como a Holanda (2030), Noruega (2035), França (2040) e o Reino Unido (2035) já estabeleceram prazos para a proibição total da venda de carros movidos a gasolina ou diesel. Outro país a se comprometer recentemente com a agenda da mobilidade limpa – esse fora das fronteiras do continente conhecido como o ‘oásis do bem-estar social’, – foi a China, que assinou o compromisso de que 12% das vendas de carros desde já deve ser dividida entre elétricos e híbridos.

No Brasil, onde a pauta ambiental não pode ser chamada de prioritária na agenda do Governo Federal, ações para a diminuição do impacto do atual modelo de mobilidade começam a ganhar força. Para a surpresa de muitos, em 12 de fevereiro de 2020, o Projeto de Lei do senador Ciro Nogueira (PP-PI) que estabelece 2030 como data limite para a venda de veículos de movidos a gasolina e diesel foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), seguindo para a Comissão do Meio Ambiente, antes de chegar ao plenário do Senado. O mesmo projeto estabelece 2040 como prazo final para que veículos movidos por motores a combustão sejam retirados de circulação. A discussão, no entanto, parou em razão da pandemia da covid-19 que, entre outras consequências, resultou na interrupção dos trabalhos das comissões legislativas.

O crescimento da eletrificação em escala global foi projetado em números pela consultoria norte-americana Arthur D. Little, que estimou uma frota circulante de 26,2 milhões de automóveis elétricos no planeta já em 2025. A mesma consultoria indicou a redução de 65% nas emissões de gases em quilômetros rodados por passageiro a partir da substituição dos automóveis a combustão pelos veículos elétricos.

Montadoras investem em infraestrutura para viabilizar a mobilidade elétrica no Brasil

Com a tendência da aplicação de regras cada vez mais rígidas para a emissão de gases e os cases de restrição aos motores a combustão pipocando em diferentes continentes, as principais montadoras do planeta têm feito do desenvolvimento dos carros híbridos e elétricos uma prioridade em seus planos de negócios.

No último Salão de Frankfurt realizado em ambiente físico, em setembro de 2019 na cidade alemã, a eletromobilidade foi protagonista nos estantes de todas as montadoras. Quem foi ao evento, porém, pode notar que em todos esses espaços os carros elétricos estavam acompanhados de tomadas para carregamento; parecia um claro recado de que a transição para ‘uma era limpa’ só será bem sucedida se acompanhada da infraestrutura necessária.

Pouco dispostas a permitir que seus investimentos na eletromobilidade naufraguem pela falta de políticas públicas na promoção dessa infraestrutura, as empesas globais têm decidido a adotar uma abordagem ‘hands on’. Em bom português, colocar a mão na massa para fazer acontecer. Exemplo dessa pró-atividade em terras brasileiras é o fato das alemãs Volkswagen, Porsche e Audi terem se associado à EDP – empresa de distribuição de energia elétrica que, no Brasil, opera nos estados de São Paulo e Espírito Santo – para anunciar a intenção de viabilizar a primeira rede de recarga ultrarrápida de veículos elétricos do país.

As montadoras entraram no projeto com know-how, fornecendo as soluções de carregamento em 30 estações de recarga capazes de reabastecer 80% da bateria de um carro em até 30 minutos. De acordo com a EDP, o empreendimento cobrirá todo o Estado de São Paulo e conectará um total de 64 pontos de carregamento entre o território paulista e as cidades do Rio de Janeiro, Vitória, Curitiba e Florianópolis, formando um corredor de mais de 2.500 quilômetros de extensão.

Falando sobre o projeto, o presidente da Audi do Brasil, Johannes Roscheck, afirmou que ele será fundamental para o aumento da confiança dos consumidores na qualidade e quantidade de postos da rede de recarga local.

A partir de uma ótica da formação de um ecossistema que, como um todo, possa suprir as necessidades e permitir que a eletrificação da frota realmente se estabeleça no país, vale lembrar que a qualificação da mão de obra dos profissionais que terão contato direto com a nova tecnologia – caso dos reparadores – também faz parte da equação.

Casamento entre veículo compartilhado e carro autônomo deve reconfigurar o espaço urbano

Autonomia total está a caminho das ruas

Embora o automóvel ainda represente um artigo de status na cultura ocidental, pesquisas globais relatam e projetam uma consolidação progressiva da cultura do compartilhamento de veículos ao redor do mundo.

O estudo ‘Car Sharing market size, industry trends report 2024’, da Global Market Insights projeta um crescimento anual de 34% do mercado de carros compartilhados até 2024. A transição do automóvel de produto para serviço deverá, segundo o sócio da PWC no Brasil, Marcelo Cioffi, diminuir significativamente a frota circulante nas grandes cidades e – a partir do momento em que essa economia compartilhada na mobilidade passar a ser acompanhada pela tecnologia dos carros autônomos – contribuir para a alteração da configuração atual do espaço urbano. “Quando os carros não precisarem mais de motoristas, toda essa dinâmica será facilitada. Imagina você pedir que um carro, um patinete ou até um drone tripulado te aguarde na saída do Metrô sem precisar se preocupar em estaciona-lo ou deixa-lo em uma estação específica depois de chegar ao seu destino. Isso muda tudo”, projeta o executivo.

A percepção de Cioffi tem sustentação em trabalhos como o coordenado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que, em simulação realizada na cidade portuguesa de Lisboa, projetou que o município liberaria uma área equivalente a 210 campos de futebol com a desocupação de estacionamentos e garagens em seu território devido à intensificação da cultura do compartilhamento de carros autônomos. Simulações adicionais conduzidas em outros países do continente europeu e nos Estados Unidos estimam que serão necessários entre 30% a 80% menos espaços de estacionamento nesse cenário.

Segundo o porta-voz da PWC, além de liberar áreas do espaço público, os efeitos dos autônomos-compartilhados impactariam a vida nas cidades também a partir de uma verdadeira revolução no mercado imobiliário. “Pessoas que hoje fazem questão de morar perto do trabalho não valorizarão tanto essa questão, se dispondo a viver nos subúrbios devido à redução significativa do tráfego e, mais do que isso, diante da possibilidade de ter um trajeto produtivo em que se pode trabalhar durante a viagem sem ter a preocupação de dirigir o automóvel ou se relacionar com o motorista”, prevê Cioffi.

Também aqui a projeção do executivo quanto à redução do tráfego resultante da adoção desse modelo é sustentada pelos números: estudos conduzidos por universidades como as americanas Princeton e Columbia e a alemã Braunschweig apontam que a capacidade das estradas já construídas seria otimizada de 80% a 270%.

Além de carros em movimento constante, esse espaço adicional será, segundo Cioffi, fruto da diminuição da frota circulante. “A frota de carros no Brasil, que hoje supera os 45 milhões de veículos tende a diminuir com o novo modelo”, decretou, antes de tranquilizar os elos da reposição automotiva citando contrapartidas que garantirão o alto volume de demanda nas oficinas. “Apesar disso, o volume de manutenção deve expandir porque a utilização dos carros crescerá de forma tão exponencial que veículos que hoje têm vida média de 11 anos terão vida útil de três. Além disso, o crescimento da ‘inteligência’ dos automóveis apontará antecipadamente as necessidades de manutenções preventivas”.

Bloqueios legislativos e éticos para a tecnologia autônoma na mobilidade

Woven City, o laboratório da Toyota para rumo à cidade inteligente

Estudo da Arthur D. Little projetou uma queda de 90% no número de acidentes fatais com a retirada do ‘fator humano’ como decisor central nos veículos. Embora dados de pesquisas indiquem aumento exponencial na segurança de tráfego propiciada pela tecnologia, o tema ainda enfrenta resistências jurídicas em diferentes países.

Entre as questões que causam maior preocupação para os legisladores se destaca a discussão sobre a necessidade de inclusão de uma espécie de ‘humanidade’ na racionalidade e nos analytics dos autônomos. Exemplo disso é o fato do Ministério Federal do Transporte e Infraestrutura Digital da Alemanha ter, em seu relatório de questões éticas relacionadas a essas tecnologias, enfatizado que “se houver necessidade de uma decisão ser tomada pela máquina, que nunca seja feita no sentido de optar por uma vida em detrimento de outra”.

Outro ponto gerador de controvérsias é a discussão sobre a responsabilização de eventuais acidentes – onde, segundo o Portal JOTA, predomina a interpretação sobre a aplicação desta à empresa fabricante, já que a tecnologia foi criada e produzida por ela, possuindo um risco intrínseco ao seu uso, sendo a causadora do acidente. Mas artigo de autoria de Rodrigo de Campos, Victor Cabral e Vitor Yeung, todos da TozziniFreire Advogados, pontua diversas variáveis capazes de alterar essa interpretação. “A estrada tinha buracos? O pedestre se jogou no veículo? No caso de smart mobility, a rede de comunicações dos carros autônomos deixou de funcionar? Houve um raio ou terremoto no local? Enfim, são fatos que podem fundamentar excludentes do nexo de causalidade, o que fundamentaria o afastamento da imputação de responsabilidade à fabricante”, conjecturam os autores.

Os impasses e as diferentes interpretações em torno dos carros autônomos têm feito com que estes tenham de ser desenvolvidos em ambientes específicos, seja em locais onde a legislação é menos conservadora quanto ao tema – como Singapura e Estados Unidos – ou em laboratórios criados pela iniciativa privada. No contexto dos ‘labs’ de desenvolvimento, a japonesa Toyota anunciou a construção de uma cidade inteligente própria, em um terreno de mais de 700 mil metros quadrados na base do Monte Funji. Batizado de ‘Woven City’, o laboratório vivo terá uma população inicial de duas mil pessoas composta de residentes e pesquisadores a fim de aplicar tecnologias de carros autônomos, robótica e mobilidade pessoal.

Afinal, o que é uma cidade inteligente?

Por se tratar de um veículo de comunicação segmentado no mercado brasileiro de manutenção de veículos, o Novo Varejo, nesta reportagem, dedicou atenção integral às questões relativas à mobilidade que integram o conceito de cidades inteligentes que, mais do que uma visão de futuro, estão sendo construídas em nosso dia a dia.

No entanto, o universo de atributos e requisitos que levarão a estas comunidades urbanas vai muito além das tecnologias e alternativas para o deslocamento de pessoas e cargas. E, felizmente, a definição deixou de ser subjetiva a partir de maio de 2019, quanto a ISO (Organização Internacional de Normalização) publicou a norma ISO 37122 – Cidades e comunidades sustentáveis, indicadores para cidades inteligentes.

O texto detalha nada menos que 80 indicadores agrupados em 18 eixos: Economia, Educação, Energia, Meio ambiente e Mudanças Climáticas, Finanças, Governança, Saúde, Habitação, População e condições sociais, Recreação, Segurança, Resíduos sólidos, Esporte e Cultura, Telecomunicação, Transportes, Agricultura urbana/local e segurança alimentar, Planejamento urbano, Águas residuais e Água. Entre todos eles, o setor de Transportes é o que tem o maior número de indicadores, com 14 no total.