Lucas Torres [email protected]
O comércio online de autopeças é uma realidade no Brasil já há algum tempo e está consolidado como uma alternativa atrativa não apenas para a pessoa física, o dono do automóvel, mas também para os reparadores. No longínquo ano de 2016, 7 em cada 10 profissionais da reparação já afirmavam adquirir produtos no mercado digital de maneira recorrente.
Dentro deste contexto, nenhum canal possui mais representatividade que o Mercado Livre (ML) – responsável por 80% do marketshare do e-commerce de peças automotivas, participação que rende um faturamento anual de aproximadamente R$ 1 bilhão. Este cenário cada vez mais consolidado tem levado o ecossistema do setor a buscar formas de diminuir os gargalos ainda existentes no processo.
O exemplo mais recente e significativo destes esforços ocorreu no último mês de julho, quando o Mercado Livre endereçou uma das principais queixas dos consumidores de autopeças online: as dificuldades de fazer à distância o match ideal entre a peça e o automóvel.
Busca filtrada
Batizada de “ferramenta de compatibilidade”, a solução encoraja os varejistas a preencherem, em campos específicos, as informações-chave como o modelo, o ano e a versão do automóvel para o qual a autopeça se destina. Na prática, a inovação busca eliminar o caráter mais ‘caótico’ das informações de compatibilidade ao oferecer uma estrutura mais rígida de inserção dos dados fundamentais, no lugar de deixar a cargo do varejista este preenchimento no campo da descrição. Além de oferecer essa estrutura para os vendedores no momento do cadastro de seus produtos, a ferramenta de compatibilidade também facilita o trabalho dos consumidores. Isso porque esta estrutura mais rígida permitiu que o marketplace criasse um sistema de filtragem em que o comprador pode, em uma busca, solicitar que apareçam apenas os produtos compatíveis com determinado veículo.
Como resultado, o maior marketplace da América Latina espera conseguir ganhos robustos no campo da efetividade e satisfação do cliente. Segundo o executivo sênior de vendas do Mercado Livre, Octavio Hozawa, a empresa pretende obter:
- Redução de 40% no índice de reclamações e devoluções.
- Redução de 2 milhões de etiquetas de devolução.
- Aumento em 2 vezes na taxa de conversão de vendas.
- Redução de 50% para a quantidade de perguntas recebidas.
Sentimentos contraditórios atrasam
implantação da ferramenta
De acordo com Guilherme Freitas, gestor da Vaapt, empresa especializada em sistemas de gestão de estoques para varejos e distribuidores de autopeças, a inovação tem produzido uma mistura de sentimentos entre seus clientes. “Alguns estão demonstrando um incômodo por acreditarem que, com a mudança, será preciso gastar mais e envolver mais pessoas no processo.
Por outro lado, também existem aqueles que acreditam que a exigência irá produzir um efeito de filtragem no mercado, dificultando a entrada de aventureiros”, afirmou o especialista em tecnologia. Como efeito prático, essa mistura de sentimentos está causando um atraso inesperado – ao menos pelo Mercado Livre – para que as empresas de autopeças possam aderir à ferramenta de compatibilidade.
Em seu cronograma de lançamento e implementação, o marketplace havia colocado o mês de agosto como prazo limite para que todos os anúncios preenchessem as compatibilidades de veículo, ano e versão, bem como salientado que os anunciantes que não o fizessem teriam seus anúncios suspensos até serem regularizados. Hoje, quase dois meses do deadline inicial, a plataforma teve de prolongar esta regularização por tempo indeterminado ou ficaria, digamos, ‘desabastecida’ de anúncios. “Comparecemos a um evento recente do Mercado Livre em que eles afirmaram já ter um algoritmo rodando para reconhecer o percentual de anúncios regularizados e que quando o montante atingisse um certo patamar, os demais anúncios sairiam do ar até que fossem corrigidos”, relata Freitas.
Questão operacional atrasa regularização
de anúncios no Mercado Livre
Acreditar ou não na eficácia da nova funcionalidade do Mercado Livre é um dos fatores que pesam sobre a celeridade da regularização dos anúncios. Existem, no entanto, outras variáveis impactando este cenário. Entre elas, a questão operacional desempenha um papel importante. Um dos argumentos de profissionais e gestores do mercado de autopeças para o atraso da implementação definitiva da ferramenta de compatibilidade está na dificuldade de se editar os até 20 mil anúncios que possuem no marketplace.
Esta demanda foi tão significativa que levou a Vaapt a criar uma solução para automatizar o preenchimento dos campos de compatibilidade. Gestor da empresa de tecnologia, Guilherme Freitas explica que sua solução está conectada ao API oficial do ML e, de lá, faz uma varredura no anúncio do varejo ou distribuidor e vai alocando as informações nos campos correspondentes. “Vamos supor que o título do anúncio seja ‘Alternador do Fiat Línea 1.9, automático, 2007 a 2009’; nossa ferramenta entende qual é o carro, o ano e a versão”, introduz Freitas, antes de complementar: “Um diferencial importante que temos é o fato de não respondermos apenas a estas compatibilidades básicas. Nossa ferramenta também preenche outros campos mais avançados disponíveis na solução de compatibilidade do Mercado Livre, tais como especificidades sobre o câmbio, o fato de ter ar-condicionado ou não, se possui outros kits de fábrica etc”.
Além de preencher de maneira automática, facilitando o trabalho de adequação de grandes e médias empresas – cujo volume de anúncios quase inviabiliza a execução manual do trabalho – a ferramenta ainda reconhece anúncios ‘pobres de informação’, questão fundamental para evitar erros e aumentar ainda mais a incidência de devoluções e reclamações. “Isso tem feito com que nossa aceitação seja bastante alta junto a todos os portes de varejo e distribuidores. Até aqui, já adequamos cerca de 1,3 milhão de anúncios de peças à ferramenta de compatibilidade”, compartilha Freitas.
Ferramenta de compatibilidade tem atuado como SEO do Mercado Livre
Embora o atraso massivo da atualização dos anúncios das autopeças junto à ferramenta de compatibilidade tenha atrasado os planos do Mercado Livre de retirar por completo os anúncios incongruentes com a inovação, o marketplace tem encontrado uma forma sutil de premiar as empresas que já se adequaram. Tal premiação tem vindo em forma de melhora do ranqueamento, em modo semelhante aos critérios que o Google utiliza para alavancar sites com bom SEO. O gestor da Vaapt, Gabriel Freitas, salienta que alguns dos clientes da empresa de tecnologia que já realizaram as mudanças comemoram um acréscimo de 20% a 25% nas vendas, índices atingidos graças ao fato destes anúncios estarem ocupando as primeiras páginas de pesquisa dos usuários. “Isso está acontecendo de maneira muito clara. O Mercado Livre não apenas está beneficiando aqueles que já estão em conformidade com a ferramenta de compatibilidade, como também está prejudicando aqueles que não estão. A relação é inversamente proporcional, já que quem não se adequou só começa a aparecer para o consumidor a partir da terceira página de pesquisa”, relata o gestor da Vaapt.
Reparação contesta eficácia da ferramenta de compatibilidade
Ao implementar a ferramenta que cria mecanismos específicos para apontar informações de compatibilidade das autopeças com os automóveis, o Mercado Livre acredita que reduzirá quase que pela metade gargalos como a devolução de peças e as reclamações. Maiores compradores da plataforma, sendo responsáveis por 89% do total de seu faturamento em autopeças, a classe dos reparadores automotivos mostra menos otimismo quanto à eficácia da inovação.
Presidente do Sindirepa Nacional, Antonio Fiola afirma que a descrença vem do fato das informações como modelo, ano do carro e versão nem sempre serem suficientes para ratificar a compatibilidade das peças, à medida que, em um mesmo ano, uma montadora acaba fazendo contrato com sistemistas diferentes. “Este fator, por si só, exige um cuidado grande dos consumidores na hora de adquirir autopeças relacionadas a motor, arrefecimento e suspensão, já que elas são muito específicas”, diz Fiola. A visão do dirigente da principal entidade representativa dos reparadores é compartilhada pelo gerente de serviços do Instituto da Qualidade Automotiva (IQA), Sergio Fabiano, que afirma que “hoje, para você identificar a peça exata é preciso utilizar o chassi do veículo porque uma marca pode ter diversos modelos e uma peça é intercambiável em diversos modelos/marcas ou não. Então você tem muitas variações”. Diante destas questões, Antonio Fiola aponta que, apesar da criação da ferramenta de compatibilidade do Mercado Livre, as compras mais bem sucedidas em marketplaces seguem sendo aquelas ligadas ao segmento de acessórios.