Em 1951, Abraham Kasinski fundou aquela que seria a maior indústria de autopeças da América Latina, a Cofap. Apenas mais um grande feito em uma trajetória empresarial única, marcada por ousadia e genialidade. O grande pioneiro do empreendedorismo nacional teve suas últimas palavras registradas pela Mais Automotive. Agora, este documento histórico está a seu alcance
Claudio Milan
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Visionário, ditador, temperamental, egocêntrico, galanteador, gênio. Não foram poucos os adjetivos utilizados ao longo do tempo para definir Abraham Kasinski, fundador da Cofap e ícone da classe empresarial brasileira.
Esses e tantos outros traços marcantes de sua personalidade estão perfeitamente descritos e ilustrados nas 613 páginas do livro “Kasinski – um gênio movido a paixão”, escrito por Maria Lúcia Doretto. Mais do que a biografia de um empreendedor, a publicação trouxe um retrato fiel da própria história do mercado automotivo brasileiro, bem como da reposição independente. “Ele é um personagem realmente fascinante, porque várias facetas de sua personalidade podem ser exploradas no campo literário. Aquele capitão de indústria, homem forte, empreendedor e que, de repente, sucumbe diante de uma mulher. Ou o trabalho no setor social, a forma como conduzia a empresa respeitando as pessoas. É um visionário”, disse a autora em depoimento à reportagem da Mais Automotive.
Estávamos em março de 2007 em um descontraído almoço sem hora para terminar que contou também com a participação da então diretora presidente da Magneti Marelli Cofap, Eliana Giannoccaro, e, claro, do centro das atenções, Abraham Kasinski em pessoa.
Do alto de seus 89 anos bem vividos na ocasião, o empresário já sentia os naturais efeitos da idade, mas não apresentava qualquer sinal de perda do consagrado espírito empreendedor e muito menos do senso de humor a cada resposta. “Uma das maiores satisfações de um homem é, ainda em vida, ver-se lançado em meio ao mundo empresarial, impresso e encadernado”. Precisa dizer mais? O trabalho corria em suas veias e aposentadoria era uma possibilidade fora de questão.
Naquele exato momento, o velho pioneiro acumulava quase uma década de acelerada atividade no mercado de motocicletas comandando a empresa que levava seu nome – e que apenas dois anos depois seria vendida para um grupo de origem chinesa, encerrando a vitoriosa trajetória de um dos maiores ícones da indústria brasileira em todos os tempos.
Quando a negociação se concretizou, em 2009, Abraham Kasinski já não concedia mais entrevistas. Coube à Mais Automotive o privilégio de ter registrado suas últimas palavras e escrever este precioso documento histórico que deve ser lido, relido, guardado e estudado. É o testamento de um mito.
Mais Automotive – Que comentário o senhor faria sobre a publicação de sua biografia?
Abraham Kasinski – Uma das maiores satisfações de um homem é, ainda em vida, ver-se lançado em meio ao mundo empresarial, impresso e encadernado, desfrutando da reputação de haver construído algo de valor. Quando a Maria Lúcia me disse que escreveria minha biografia, sinceramente, achei que minha vida não valia um livro. Quando a obra ficou pronta, quando vi o boneco do livro, minha fotografia estampada na capa, minha história contida naquelas 613 páginas, não pude deixar de sentir um enorme orgulho e uma grande emoção.
MA – O relato de Maria Lúcia Doretto foi fiel?
AK – Tenho e externo com frequência que a Maria Lúcia conhece a mim muito melhor do que eu mesmo. Não se pode atribuir este fato apenas à longa trajetória profissional a meu lado, porque na verdade ela foi muito mais que uma secretária. Aconteceu aquilo a que eu denomino de parceria perfeita, pois ela assistiu e participou das grandes decisões da companhia, acompanhou toda a sua evolução e, como eu, vibrou com todas as suas grandes conquistas. Esses fatos são relatados no livro com tal intensidade e veracidade que quando o li e o releio tenho a exata sensação de estar vendo um filme da minha própria vida. Depois da venda da Cofap e antes que a Maria Lúcia viesse me consultar, tive várias solicitações de jornalistas que se propunham a escrever minha história. Nunca as aceitei. Com a Maria Lúcia havia dois fatores importantes: a confiança que sempre depositei nela, o que me dava a certeza de que ela escreveria um livro sério e o conhecimento que ela tinha da minha vida, da minha personalidade e da empresa.
MA – O senhor costuma ler biografias?
AK – Aprecio muito esse gênero literário, sobretudo as biografias de homens que traçam para si mesmos uma trajetória de sucesso e direcionam suas vidas para a conquista de seus objetivos. Eles servem como exemplos para as gerações futuras. Entre as leituras que mais me encantaram estão as biografias de Lee Iacocca; de Akio Morita; Jack Welsh; de Assis Chateaubriand e, sem dúvida, pela grandiosidade da personagem e pela sua contribuição para o país, a do Barão de Mauá.
MA – Muitos são os adjetivos usados para defini-lo. Quais seriam os mais adequados?
AK – Eu gostaria de descartar o conceito de gênio. Prefiro o de visionário, embora dentro da sua pergunta, a palavra que mais se ajuste a mim é incansável. Eu me gabo de ter abraçado todos os prazeres e dissabores da minha vida profissional de modo muito aplicado e especial. O conhecimento abrangente do meu negócio, aliado à minha intuição e à minha capacidade de sonhar, fez de mim aquilo que se pode chamar de empreendedor visionário.
MA – No final da década de 40, o senhor cuidava, ao lado de seu irmão, do negócio da família, a loja de autopeças Três Leões. Como se deu a decisão de passar a fabricar componentes, que originou a Cofap?
AK – Meu interesse por peças para automóveis começou de maneira meio forçada, quando meu pai morreu, deixando-nos seu negócio. Continuei com ele por imposição de meu irmão e, depois, como está mencionado no último capítulo do livro, enamorei-me do meu negócio de autopeças. A Três Leões se transformou na primeira loja de departamentos do Brasil. Tínhamos um negócio altamente lucrativo, mas meus sonhos de crescer não paravam por ali. O livro menciona o momento exato em que a minha intuição se aliou à minha necessidade de partir para novos empreendimentos: “Mas onde buscar uma nova ideia, virgem, pioneira? Onde? E foi por volta de 1949 que, ao entrar na loja, exclamei: ‘Ai está o futuro’”. Isso aconteceu quando vi, atrás de um dos balcões da loja, um display com juntas de cortiça feitas pela empresa Stevaux e percebi que já se podia, ainda que em pequenos lotes e condições precárias, fabricar peças nacionais para o mercado de reposição. Não poderíamos continuar apenas vendendo, ficaríamos para trás. Era preciso produzir. Nosso primeiro produto foi o anel de pistão. De nossos registros na Três Leões constavam informações de que o anel de pistão era disparado o principal item de vendas. Optamos pela produção dessa peça, apesar das dificuldades técnicas que ela apresentava. Começamos o projeto em 1951 e, em 1953, iniciaram-se as operações. Quatro meses após o primeiro faturamento já contabilizávamos lucros.
MA – E o amortecedor?
AK – O amortecedor foi o nosso segundo produto. Após o sucesso da fábrica de anéis, comecei a pensar que era preciso crescer mais. Em 1955 surgia a fábrica de amortecedores. Esse produto realizaria meu sonho de ver o consumidor pedir no balcão: “Eu quero um Cofap”.
MA – A campanha do Cofapinho até hoje é lembrada como referência de sucesso não apenas no setor automotivo, mas também no mercado publicitário. Como surgiu essa ideia?
AK – Tenho que admitir que a campanha do Cofapinho, que se transformou em sinônimo de amortecedor, virou um case, porque mesmo fora do ar há vários anos, ainda apresenta um dos maiores índices de recall da propaganda brasileira. A ideia de usar o bassé como garoto propaganda do amortecedor, como é explicado no livro, foi do meu filho, Roberto Kasinski.
MA – A Cofap se transformou em uma multinacional brasileira. Em que o momento o senhor sentiu que era hora de construir unidades em outros países?
AK – Vendo os movimentos dos blocos econômicos que começavam a se formar no mercado mundial e que podiam eventualmente obstruir a livre exportação dos produtos Cofap, através de barreiras alfandegárias. É preciso ressaltar que já exportávamos nossos produtos para 98 países dos cinco continentes. Mas quando a comunidade europeia começou a ser formatada e deu mostras de que poderia fechar o mercado – sendo o mercado europeu era um grande cliente da Cofap –, eu não protestei, montei uma fábrica em Portugal. Quando percebemos que os Estados Unidos poderiam estabelecer uma zona de livre comércio, montamos uma fábrica nos Estados Unidos.
MA – A Cofap chegou a ter 22 mil funcionários e seu faturamento se aproximou de R$ 1 bilhão ao ano. Em período de globalização, seria possível manter esses resultados sem transferir a empresa ao capital estrangeiro?
AK – Seria.
MA – A gestão familiar ainda é um problema para as empresas brasileiras?
AK – Pela experiência que tive na Cofap, tanto naquela época como hoje, vejo o problema sucessório como um dos mais complexos nas empresas de gestão familiar. Eu até gostaria de conhecer uma fórmula mágica para resolver o conflito. Confesso que não a encontrei quando dela necessitava e ainda hoje padeço de certa incredulidade quando ouço falar que esse processo passa pela profissionalização pura e simples.
MA – De onde vinham as referências para suas atitudes inovadoras?
AK – Estive sempre muito voltado para todos os acontecimentos importantes dentro da indústria automotiva mundial. Meu profundo conhecimento dos avanços tecnológicos internacionais, aliado à minha paixão pela Cofap, me conduziu na direção dessas realizações. Dizem que fui pioneiro e empreendedor. Devo isso aos meus desejos de crescer, à minha intuição e àquilo que chamo de força realizadora. Gosto de afirmar que fiz a Cofap com peito e caneta Parker, mas devo salientar que contei com uma equipe capaz de entender meus sonhos e transformá-los em realidade. Especialmente na área de bem-estar social tive na autora do livro uma das minhas grandes inspiradoras, a quem eu costumava chamar de “o lado humano da Cofap”.
MA – Qual a sua avaliação para o mercado de reposição hoje?
AK – O aftermarket de autopeças brasileiro é um mercado maduro, mas ainda com amplas possibilidades de expansão. Se pensarmos na idade média da nossa frota circulante, teremos uma clara ideia de quão vigoroso ainda pode ser esse mercado. E eu o classifico como maduro, apesar dele estar ainda muito longe do ponto de saturação, porque tem técnicas e formas de atuação que o colocam entre os mais agressivos e profissionais do mundo.
MA – E para onde caminha esse mercado?
AK – Apesar da constante evolução da qualidade do produto estar gerando uma postergação cada vez maior do seu momento de troca, o parque automotivo brasileiro ainda propicia ao setor amplas possibilidades de expansão. Ainda mais que o próprio avanço tecnológico pode ser um importante aliado se, além de se vender peças, passar a se vender também serviços e treinamento, o que aumenta o valor agregado do negócio.
MA – Como o produto nacional poderá combater o avanço das autopeças chineses no Brasil?
AK – Com qualidade e serviços, já que com preços essa guerra está perdida. Acontece que a autopeça chinesa que chega hoje ao nosso país nem sempre é de boa qualidade ou tem a qualidade regular. Além disso, existe o problema do pós-venda, ou seja, quem vai garantir a peça nos diferentes elos da cadeia de distribuição? Portanto, a saída para essa competição é uma estratégia basicamente calcada nos serviços e nos diferenciais que os fabricantes e os distribuidores brasileiros podem oferecer aos aplicadores.
MA – Afinal, a China é uma ameaça concreta?
AK – Os Brasileiros estão com medo da China, mas nós somos maiores e mais inteligentes que a China. Temos uma cultura diferente, com outro sistema. E em que país da Europa nós não estamos? Os asiáticos vão vender enquanto deixarmos. O número de veículos circulando é cada vez maior, então vamos vender mais.
MA – O que os gestores de empresas devem fazer hoje para superar as dificuldades e crescer?
AK – Existem vários caminhos para se manter competitivo em um mercado cada vez mais agressivo, mas, seguramente, é fundamental que a empresa dependa o menos possível do estado, ou seja, que ela tenha uma política de custos e qualidade que lhe permita sobreviver mesmo com a carga tributária brasileira – a segunda mais alta do mundo –, com uma burocracia incompatível com um país industrializado como o nosso e esteja apta a enfrentar concorrência de qualquer parte do mundo, através de uma política de exportação.
MA – O que o motivou a iniciar um novo negócio após deixar a Cofap?
AK – Eu tinha 80 anos e todos os direitos a uma aposentadoria que me permitisse gozar o tempo livre que se abria diante de mim, depois de haver cumprido uma trajetória muito bonita. Mas, lá dentro de mim, acendia-se de novo a chama que me empurrava em direção contrária ao ócio. A necessidade de empreender, de criar, de realizar, de gerar riquezas foi mais forte. Daí nasceu a força impulsora que me incitou a começar de novo.
MA – Uma das ousadias da Kasinski, além das motos, foi propor um pequeno veículo de três rodas. O senhor ainda tem convicção da viabilidade desse produto no mercado brasileiro?
AK – Eu não tenho dúvida nenhuma. Eu trouxe cinco carros, da Turquia, da China e da índia. Eu queria um veículo que pudesse ser vendido como caminhão, carro de passeio ou como táxi. Tudo isso usando o mesmo chassi. E qual o segredo de um negócio desses? No Brasil, precisa ser um veículo barato. Não é um projeto bom para o centro de são Paulo, mas para os bairros da periferia é. É bom em Maceió. Não é um veículo para ser dirigido por um consumidor de nível cultural ou financeiro alto. É para as classes sociais mais baixas. Assim, essas pessoas podem comprar um táxi. Não podem comprar um caminhão, mas pode comprar um pequeno veículo de carga. O veículo tem que ser flexível e partir da mesma base. Não sou americano, francês, italiano ou alemão. Não posso fazer um carro para cada tipo de cliente. Tenho que fazer um veículo bom para todos. Na frente e na parte de baixo é sempre o mesmo veiculo. Com isso, conseguimos economia de escala. O conceito é correto, mas apesar disso eu apanhei muito.
MA – Como é sua rotina à frente da empresa?
AK – Adoro o meu negócio e o meu trabalho. É deles que vem a força que me mantém vivo e ativo já perto de completar noventa anos. Não tenho horários para expediente. Começo e termino na hora em que for preciso.
MA – Um de seus sonhos na infância era ser médico e construir o maior hospital do mundo. Como é o hospital que o senhor construiu em Campinas para pesquisa e assistência à reabilitação crânio facial?
AK – O hospital que eu fiz em Campinas até hoje não foi copiado por ninguém. Não existe outro igual a aquele. Levei o arquiteto para Roma. Depois fomos à Israel para ver como eram os hospitais modernos lá. Porque quando não há gente para trabalhar, é preciso ser tudo eficiente, prático. Você não carrega a roupa para a lavanderia, coloca em um tubo que envia para lavar. Um hospital não tem condições de ter gente abundante para fazer um serviço simples.
MA – Abraham Kasinski é gestor ou refém de sua personalidade?
AK – Você não faz as coisas, a vida faz você fazer as coisas. Você vai por um caminho e, de repente, desvia e não sabe por quê. E segue por outro caminho. Não se trata de ser inteligente ou superdotado, nada disso. É levado para outro rumo e vai. Viver no meio em que eu vivo, que é muito difícil, por isso também é difícil eu definir a mim mesmo. Eu gosto do meu negócio, admiro meu negócio, fiz sucesso e ganhei dinheiro com o meu negócio. E sempre fui muito atrevido, metido, vaidoso e prepotente, achando que era o dono da verdade. Mas com o tempo você volta atrás e aprende. É preciso ser gente, se você não for gente, não consegue nada. Hoje sei que é preciso ser gente para trabalhar com gente. Se você não trabalhar com gente, não terá para quem transmitir as loucuras do seu pensamento.