“Falta base sustentável para manter desempenho da economia”

Lucas Torres [email protected]

No início deste mês de setembro, o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatísticas (IBGE) divulgou dados demonstrando
que a economia brasileira superou boa parte das expectativas
no primeiro semestre de 2022. No período, o Produto Interno
Bruto da nação atingiu alta de 2,5%.
Tais resultados geraram sensações mistas entre diferentes
correntes de analistas econômicos e conjunturais do país.
De um lado, aqueles que pediam cautela – contextualizando
os números gerais com a forte dependência dos setores de
serviço e consumo expostas pelo relatório completo, e a relação
que este cenário tem com medidas consideradas artificiais de
estímulo à economia. Do outro, segmentos mais otimistas que
apontam para uma tendência de melhora contínua – passadas
as turbulências causadas pela pandemia da covid-19.

A fim de destrinchar, com dados concretos, o atual cenário
e oferecer uma perspectiva real aos empresários do
aftermarket automotivo nacional, nossa reportagem recorreu
ao Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio
Vargas (FGV IBRE).
Em uma conversa com Juliana Trece, analista responsável
pela elaboração mensal do Monitor da Atividade Econômica
(Monitor do PIB-FGV), abordamos questões como o impacto do
atual endividamento das famílias brasileiras no desempenho do
consumo no médio e longo prazo; a sustentabilidade de uma
política de incentivo que compromete o teto de gastos como
propulsora da atividade do consumo local; e as possíveis
dificuldades trazidas por um cenário internacional instável.
Confira a seguir a íntegra de mais esta entrevista exclusiva.

Novo Varejo – No início do mês, o IBGE divulgou um
crescimento robusto do PIB brasileiro relativo ao primeiro
semestre, com alta de 2,5%. Muito deste índice esteve
atrelado ao forte desempenho do setor de serviços e um
crescimento também no consumo em geral. A que você
atribuiu este cenário positivo?
Juliana Trece –
Realmente, a gente viu números positivos.
Além do PIB, tivemos outras respostas importantes: o mercado
de trabalho respondeu, com a taxa de desemprego dando
uma reduzida; a inflação também não está mais em uma
crescente tão alta. Tudo isso mostrou que nossa economia teve
um impulso forte na primeira parte do ano. Como você bem
destacou, porém, a gente consegue ver que o consumo e os
serviços foram os principais fatores para este avanço. Então,
quando olhamos principalmente a parte de serviços, vemos
uma ligação com o período de normalização de atividades
que ficaram muito tempo paradas durante a pandemia e que
agora florescem a partir de uma demanda represada. Nisso se
incluem transportes, bares, restaurantes etc. Já no campo do
consumo, minha leitura é que os resultados têm sido reflexo dos
diversos estímulos que o governo tem dado para a economia.


NV – O quanto deste bom momento da economia é sustentável?
JT –
A sustentabilidade deste cenário para o segundo semestre
e para o ano que vem traz algumas incertezas. Quando a
gente fala de consumo, temos indicadores dentro desta própria
categoria que indicam que a gente pode ter dificuldades ainda
neste ano com relação à manutenção de uma atividade na
mesma magnitude. Por exemplo, vimos com os dados do monitor
no PIB que o consumo de serviços cresceu 7% no primeiro
semestre do ano, enquanto o consumo de bens duráveis caiu
6,8%. Isso mostra que itens mais caros, que precisam, em
geral, de financiamento acabam tendo dificuldade em um
cenário de juros mais elevados. Dentro deste grupo estão os
eletrodomésticos e os automóveis, itens que já têm passado por
dificuldades neste momento bom da economia e que devem
sofrer ainda mais com a desaceleração que a gente espera
para o resto do ano e para 2023.


NV – Recentemente, a Confederação Nacional do Comércio
revelou que 78% das famílias brasileiras estão endividadas
e que a combinação do endividamento com a inadimplência
atingiu o maior patamar em 12 anos. Este dado, que traz
muita preocupação para o varejo, entra na sua conta
na hora de projetar a desaceleração econômica em um
horizonte próximo?
JT –
Perfeito. Essa questão de o endividamento das famílias
estar tão elevado é mais um fator que nos faz achar que a economia vai desacelerar. Isso mostra que parcela importante
da população está com parte da renda comprometida com
financiamentos e com a inadimplência. São fatores que
colocam a variável do consumo, que é o que tem segurado
a economia no momento, em dúvida. Eu, sinceramente,
acredito que o consumo ainda vai ter papel de destaque, mas
vai diminuir progressivamente, pois não há muito como segurar
da forma que está vindo. Quando a gente olha com detalhes os
dados de endividamento, por exemplo, vemos que o cartão de
crédito ainda lidera. Mas, aos poucos, ele tem perdido espaço
para carnês, algo que indica que as famílias estão utilizando
créditos para suprir necessidades mais básicas. Não é como se
elas estivessem financiando um imóvel ou um automóvel.


NV – Os setores imobiliário e automotivo realmente têm
mostrado uma queda persistente em termos de consumo.
Quais fatores da economia estão contribuindo para este
momento ruim?
JT –
Isso é fruto de um mercado com juros muito elevados,
dentro do qual as famílias já estão com a renda comprometida
e em um contexto de mercado de trabalho em que a queda
do desemprego tem se ancorado majoritariamente em vagas
com menor rendimento e de característica informal. O cenário
é este: temos uma menor renda disponível tanto porque a
inflação está elevada quanto porque parte da renda está
ficando comprometida com dívidas. Isso vai tirando o fôlego do
consumo destes bens.


NV – Você pode expandir um pouco este raciocínio sobre
a dinâmica do endividamento? Ele funciona como aquele
jargão popular “vender a janta para comer no almoço”?
JT –
A dinâmica é exatamente essa: por um lado, a dívida acaba
ajudando o consumo em um primeiro momento, mas no futuro
o custo pode ser mais elevado do que se a desaceleração
acontecesse por agora. Outro ponto que eu queria comentar
é o do crédito consignado. Uma modalidade que vem sendo
utilizada e que acaba ajudando as famílias a terem mais renda
em um primeiro momento, mas que tende fazê-las se enrolar no
médio e longo prazo.


NV – Alguns especialistas têm classificado o atual
crescimento como ‘artificial’. Você compartilha desta
ideia? Como as eleições podem impactar este horizonte de
desaceleração inevitável?
JT –
Em resumo, eu acho que esse crescimento é, sim, um pouco
artificial à medida que a economia está sendo muito estimulada.
Não tem como sobreviver por muito tempo. Não existe muito
mais fôlego. Tínhamos a normalização, mas esse fôlego já acabou. O que tem segurado a economia são
realmente os estímulos e isso acaba esbarrando bastante
na questão fiscal. Então, independentemente de quem ganhar
a eleição, o ano que vem será muito provavelmente um ano
difícil. O Brasil até tem uma relação dívida-PIB estável, mas,
dependendo do tempo em que estes estímulos provisórios se
tornarem permanentes – ferindo o teto de gastos –, tudo isso
pode fazer com que a trajetória da dívida cresça. Eu, realmente,
vejo um cenário difícil. Sem contar que, adicionalmente, temos
uma possibilidade de existir recessão global, algo que, se
acontecer, vai acabar nos afetando.


NV – A que você atribui esta possibilidade de recessão
global? Em quais áreas um cenário como este impactaria a
economia brasileira mais fortemente?
JT –
Essa perspectiva vem das seguidas elevações de juros
voltadas a conter a inflação em algumas das principais
economias do mundo. Temos que ter em mente: isso no Brasil,
infelizmente, é até comum, já que historicamente lidamos com
cenários de inflação muito alta. Mas, nos países de economias
mais avançadas isso não é tão recorrente. Pelo contrário. Então,
este ponto faz com que vislumbremos uma grande possibilidade
de haver recessão global e diminuição do ritmo do comércio
exterior. Em relação aos impactos por aqui, sugiro projetarmos
um ambiente em que a China – nosso maior parceiro comercial
– desacelere fortemente. Digo isso porque dependemos
dos chineses tanto na parte de exportações quanto na de
importações. Sendo assim, se a China desacelera de uma forma
muito forte, ela irá impactar até mesmo alguns setores chave de
nossa economia que têm passado à margem de algumas das
nossas crises mais agudas, que são os segmentos mais ligados
às commodities, como o agronegócio.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *