Por Claudio Milan [email protected]
Os movimentos Right to Repair e Right to Connect vêm merecendo uma ampla cobertura do NovoVarejo em razão da importância para o aftermarket automotivo do acesso às informações para o diagnóstico veicular armazenadas em nuvem pelas montadoras. O acesso a este conteúdo, mais do que um direito do reparador, é uma questão de respeito à liberdade de escolha do consumidor na hora de realizar um serviço de manutenção em seu veículo. Em entrevista exclusiva a nossa reportagem, José Palazzi, diretor sênior da Qualcomm, traz uma perspectiva mais otimista em relação ao desfecho deste impasse. Ele entende que, assim como ocorreu com as informações geradas pelos conectores OBD e OBD-II, também os dados em nuvens se tornarão gradativamente acessíveis. Você vai acompanhar a seguir uma aula sobre conectividade veiculas, ministrada por quem está por trás do desenvolvimento destes sistemas para as montadoras.
É a primeira vez que um conteúdo com esta origem é publicado para o mercado de reposição. Então, aproveite esta rara oportunidade para enriquecer seus conhecimentos sobre uma das mais importantes tendências do setor da mobilidade.
NovoVarejo Automotivo – A Qualcomm não é uma empresa com que o aftermarket automotivo tem familiaridade. O que ela produz?
José Palazzi – Somos uma empresa de tecnologia, temos uma base de 40 mil funcionários no mundo inteiro. Uma empresa que fatura em torno de 40 bilhões de dólares, mas de fato somos pouco conhecidos. E o motivo disso é que somos tidos como um fabricante de matéria-prima e propriedades intelectuais, desde os primórdios do telefone celular. Só que a tecnologia de celular evoluiu. Então, se num primeiro momento nós víamos essa tecnologia somente para falar ao telefone e, num segundo momento, para mandar mensagens de textos ou acessar nossa conta no banco, hoje isso se expandiu de uma forma exponencial, de modo que os veículos são a real expressão de onde isso podia chegar. A tecnologia celular hoje viabiliza que veículos tenham um conteúdo de multimídia melhor, mandem informações em alta velocidade para outros veículos, para pessoas ou para infraestruturas de forma a tornar a direção mais segura, dar mais qualidade ao motorista, permitindo que ele possa dedicar mais atenção a dirigir o veículo, que é o principal. E, lá na frente, já preparando a direção autônoma. Tendo percebido que isso é uma tendência, olhamos o mercado automobilístico como estratégico. Hoje, temos orgulho em dizer que muitos desses carros eletrificados ou mesmo carros de ciclo de combustão convencional utilizam as nossas tecnologias desde o multimídia até a forma com que se comunicam com a nuvem quando mandam todas essas informação sobre o status deles – e recebem também informação vinda de fora.
NVA – O que existe de mais avançado hoje em termos de recursos digitais e de conectividade para os automóveis?
JP – A interface visual do usuário com o veículo se dá no painel de instrumentos e no painel multimídia. E, para os ocupantes, há telas que ficam nos bancos traseiros, para entretenimento. Mas vamos nos concentrar no motorista. Hoje ele tem o painel de instrumentos e o painel multimidia, em que ele consegue ter conteúdo adicional, ver highlights das mensagens que chegam e fazer a interface com o ar-condicionado, o rádio, a câmera de ré. Você percebe que eu falei secundário? Porque o primário tem que ter informações vitais, geralmente a velocidade, temperatura, conta-giros. Eu acredito que isso vai se manter para não tirar a atenção do motorista. Mas estamos percebendo que, com o advento da conectividade, mais do que simplesmente mandar sinais vitais do carro para fora ou mandar a localização do carro para uma seguradora, por exemplo, hoje em dia é possível criar novos serviços. Imagina que em veículos de locadoras eu posso determinar que aquele veículo só pode estar em determinada região, Ou ainda, como proprietário do veículo, eu posso fazer ativações remotamente. Gosto de dar o seguinte exemplo: pensando no presente e já no futuro, nos veículos elétricos as montadoras terão a possibilidade de oferecer características e serviços funcionais e com garantia que você não poderá controlar sozinho. Pense num veículo 100% elétrico com potência de 100 cavalos. Digamos que, conhecendo seus hábitos de dirigir – em estrada, por exemplo – aquela montadora ofereça para você mais 50 cavalos durante 10 horas. Então, você vai poder contratar esses 50 cavalos a mais sem perder garantia do carro. É um recurso que ela vai ativar remotamente, não vai mandar um técnico na sua casa para ativar. Imagina receber uma mensagem dizendo: “Você programou essa viagem e eu posso fornecer 50 cavalos a mais sem comprometer a garantia da sua bateria e de seu carro, aperte aqui se quiser ativar” e imediatamente você vai ter aquele recurso disponível. Em resumo: a conectividade vai permitir novos serviços que não sabemos ainda exatamente como serão, mas nós, como provedores de tecnologia, acreditamos que temos que deixar isso pronto para que o mercado possa fazer uso e desenvolver novas e mais disruptivas ideias para os veículos.
NVA – Isso leva a duas questões importantes para o aftermarket automotivo. A primeira: propriedade dos dados. O carro conversa em tempo real e se discute hoje em todo o mundo a quem pertence a informação gerada por ele – montadora, concessionária, dono do carro. Como você enfrenta esse debate?
JP – A indústria automobilística tem se mostrado muito sensível a esse ponto e é um tema de discussão constante que temos com ela. Percebemos que a decisão sobre isso está indo na direção de definir muito bem o que é conteúdo que deva ou possa estar na nuvem e o que é conteúdo que deva ou possa estar no carro. Um exemplo prático que, a propósito, nos leva a distribuir a inteligência entre o carro e a nuvem e não toda a inteligência só na nuvem ou no carro. Hoje é comum nos projetos de veículos que acompanhamos e que usam nossas tecnologias a existência de câmeras dentro do carro. Num primeiro momento imaginamos que câmeras são um “big brother”, ou seja, vão tirar um conteúdo e mandar para a nuvem e eu posso ter informações veiculadas na nuvem que eu não necessariamente autorizei. Mas, e se considerarmos que essas câmeras sejam utilizadas com a inteligência dentro do veículo de forma que ela tome a decisão de permitir que aquele carro dê a partida porque você foi reconhecido como a pessoa autorizada, sem necessariamente ter mandado essa imagem para a nuvem? É o que eu chamo de inteligência local: todo atributo de imagem, de comparação, está dentro do veículo. Agora vamos a um exemplo de interface com a nuvem. Digamos que eu sou uma locadora de veículos e quero simplesmente contar quantas pessoas diferentes dirigiram aquele veículo num período de tempo. A única informação que vai para a nuvem é um número. Outro exemplo: essa mesma câmera está olhando para dentro do carro e pode aprender padrões como o cinto de segurança afivelado, se existe uma criança no banco traseiro, se ela devidamente acomodada na cadeirinha. Esse é um tipo de conteúdo em que não é preciso identificar um rosto, identificar quem é a criança. Somente uso a inteligência para me dizer que aquele cinto foi afivelado e que a criança está no banco de trás – ou mandar um aviso no painel advertindo que tem uma criança no banco de trás que não está na cadeirinha. Essa é uma inteligência que pode ficar na nuvem. O resumo é: a indústria automobilística – junto conosco, como provedores de tecnologia – está tentando ao máximo possível preservar as informações que devam ser sigilosas para dentro do ambiente do veículo, de forma que elas não vazem, não sejam trocáveis, e utilizar somente o contexto do que possa ser rastreável ou aproveitável para a condução segura como informações que são processadas na nuvem.
NVA – Então vamos à segunda questão. Até pouco tempo o diagnóstico de falhas dos veículos era feito via conector OBD-II. Hoje as informações começam a ser armazenadas na nuvem, que, naturalmente, pertence à montadora. Movimentos como Right to Repair e Right to Connect buscam criar meios para que os reparadores possam acessar estas informações. Há montadoras que já oferecem assinaturas para vender o acesso aos dados, o que representa um novo custo para o reparador. De que forma você projeta uma futura solução para esse impasse garantindo ao consumidor a devida liberdade para escolher o estabelecimento em que ele deseja realizar os serviços de manutenção em seu veículo?
JP – Eu acho que de uma forma muito parecida com o que aconteceu nos primórdios da porta OBD, que evoluiu até o nível dois. Ela não era acessível a tudo e a todos. Você deve se recordar que, no começo, não o protocolo de camada física, mas a camada de enlace para cima era tratada a sete chaves pelos fabricantes. A diferença é que era uma porta física, em que era possível testar, simular, fazer engenharia reversa e descobrir. Nós acreditamos que o modelo da porta física mecânica não dava para segurar por muito tempo porque, apesar de dar uma informação maravilhosa, ela é muito insegura também. Assim como ela pode ser utilizada para o bem, pode ser utilizada para o mal, no contexto de uso malicioso. É uma porta de comunicação. Nós estamos na vanguarda do veículo eletrificado, vendo a importância da conectividade dele e essa informação não está tão acessível. Mas, acreditamos piamente que em determinado momento vai haver um layer de abstração de todo esse hardware – eu vou chamar assim – de forma que exista, sim, a oportunidade para a manutenção tanto preventiva, como preditiva e corretiva. Porque as próprias montadoras não vão ter condições de dar demanda e atenção a todo o parque instalado. E é uma coisa tão natural, a evidência disso é que os protocolos, mesmo no OBD-II, foram posteriormente documentados – nem digo todos, mas a grande maioria. Então é uma questão de tempo. Acho que neste momento ainda não está fácil, e eu entendo isso, se me colocassem no papel de um profissional de manutenção de veículos eu me sentiria também com essa dificuldade. Mas temos que considerar que estamos ainda na vanguarda do início da tecnologia. Ela vai evoluir, nós não estamos falando ainda numa camada de enlace regulamentada que possa ser feita de forma igual por todos. Mas confiamos que isso vai acontecer num determinado momento. E quando acontecer, a única diferença é que não vai ser uma conexão física no OBD do carro, mas eu vou conversar provavelmente com o dashboard disponibilizado por aquela marca, pelo fabricante daquele carro, e ele vai me dar as informações que eu quero para a inteligência da minha unidade portátil – podendo me dizer em mensagens na língua que eu quiser, no formato que eu quiser, o que eu tenho que observar para a manutenção, do jeito que é hoje com a porta OBD.