Empresas de tecnologia x cadeia de autopeças

De acordo com Ricardo Bacellar, nova realidade cria a necessidade de que haja uma união real entre os…

De acordo com Ricardo Bacellar, nova realidade cria a necessidade de que haja uma união real entre os competidores internos

Lucas Torres
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Com a digitalização cada vez mais intensa das relações comerciais promovida pela pandemia do novo coronavírus, a disputa entre os players que possuem o domínio das ferramentas tecnológicas e as empresas especializadas, então dominantes no mundo físico, ficou evidente.

Plataformas como o marketplace Mercado Livre passaram a dar abrigo para o surgimento cada vez mais constante de ‘lojas próprias’ de produtores de autopeças, amplificando o alcance e facilitando a chegada destes segundos à casa do consumidor por meio da via digital, de modo a criar um caminho alternativo ao sistema ‘indústria-distribuidor-varejo’ que regia a cadeia do aftermarket até os últimos anos.

De acordo com o líder dos setores Automotivo e Mercado Industrial da consultoria KPMG, Ricardo Bacellar, esta nova realidade acende um sinal de alerta para os players da cadeia automotiva e cria uma necessidade urgente de percepção de que uma união real entre os competidores internos será imprescindível para que essas empresas possam sobreviver à concorrência dos ‘outsiders digitais’.

Embora reconheça que as empresas de tecnologia estão bem à frente no atual momento, Bacellar acredita que um movimento de ‘coopetição’ (cooperação + competição) entre os players internos pode frear o movimento de total ‘plataformização’, que enfraquece o setor e, sobretudo, o varejo.

“A gente já vê, em outros segmentos nos quais essa onda de ‘plataformização’ já tem mais quilometragem, players rediscutindo isso e começando a se associar para criar suas próprias plataformas. O varejo de alimentação é um que já está fazendo isso”, afirma Bacellar.

Além do embate pelas rédeas do comércio de peças no país, o especialista foi convidado ainda a refletir sobre os efeitos da pandemia nos próximos passos da indústria automotiva nacional. Veja o que ele disse na entrevista exclusiva a seguir.

Mais Automotive – Em evento recente promovido pela DPaschoal, você afirmou que – mesmo em meio a uma quebra de cadeia na reposição automotiva – os principais concorrentes das empresas do segmento não são seus adversários ‘internos’ e sim as empresas de tecnologia. Gostaria que você desenvolvesse um pouco esse raciocínio.

Ricardo Bacellar – A gente está trocando um pouco o modelo físico pelo embarque em uma segunda via que é o modelo digital, o que não necessariamente significa a morte do primeiro, mas um complemento de estratégia. E aí, exatamente nesse ponto, que mora a concorrência daqueles que eu tenho chamado de ‘outsiders digitais’. Essas empresas de tecnologia não têm a menor pretensão de produzir peça, o que elas querem é dominar a relação com o consumidor, como elas já fazem em outros mercados.

Eles cercam o consumidor de um ambiente muito favorável, que é matador. É o que todos nós queremos: comprar sem fricção. Com isso elas se posicionam como intermediários no processo de compra. A gente está falando sobre peças, mas se aplica a qualquer segmento. Nesse sentido, hoje, numa análise muito fria, é quase que uma guerra perdida. Os outsiders digitais estão muito à frente.

MA – Alguns gigantes da tecnologia como a Amazon estão adotando uma postura agressiva de entrada no mercado de autopeças. Sabemos quão ‘dominantes’ estas empresas podem ser com o capital que têm. De que maneira o ecossistema de empresas já existentes no setor podem resistir a essa concorrência quase predatória?

RB – A única alternativa é a comunidade se aliar para ganhar mais força. É a chamada ‘coopetition’, que nada mais é do que se aliar a um pseudo-concorrente. É as empresas se unirem para conversar dizendo “olha, nós somos concorrentes, mas por que a gente não pode dividir o mesmo espaço? Deixa o consumidor continuar escolhendo”. Mas a gente precisa criar uma plataforma de referência na qual o consumidor, até o dono da oficina mais pequenininha que existe, reconheça: “preciso comprar uma peça, vou lá na plataforma X”.

Se eu tenho 5 dinheiros e você tem 5 dinheiros, juntos, temos um poder de investimento de 10 dinheiros. Com cada um gastando 5. A união entre os diferentes players aumenta esse poder de investimento em inovação e tecnologia, que tem, aliás se tornado cada vez mais caro. Afinal, se antes um ciclo de inovação durava cinco anos, hoje projetos de três anos já encontram resistência por serem ‘longos demais’. Quanto mais e mais rápido se tem de inovar, mais investimento é preciso.

MA – Então, nesse contexto, o que você está dizendo é que marketplaces ‘segmentados’ criados e compostos pelas empresas que compõem o core do setor de autopeças e não são apenas intermediários, como é o caso das empresas de tecnologia, podem ser uma alternativa viável?

RB – A gente já vê, em outros segmentos nos quais essa onda de ‘plataformização’ já tem mais quilometragem, players rediscutindo isso e começando a se associar para criar suas próprias plataformas. O varejo de alimentação é um que já está fazendo isso. Inicialmente, eles seguiram o mesmo caminho. Um grande número de restaurantes migrou para plataformas robustecidas, já estabelecidas no mercado.

Hoje, eles já perceberam que precisam criar suas próprias soluções porque acaba saindo muito caro estar nessas plataformas. As taxas são altas. Além disso, a maior parte do domínio sobre a ‘inteligência da relação com o consumidor’ acaba ficando com a plataforma. Ok, de início, se ganha no volume. Muito mais do que ganharia de maneira individual no começo de uma trajetória digital. Mas, depois, a dependência dessas plataformas acaba criando uma série de desvantagens. Por isso o varejo de alimentos – e também de outros nichos – já está se juntando para rediscutir a estratégia a fim de criar plataformas administradas pelos players do setor onde é possível maximizar o lucro e administrar os custos de maneira conjunta.

MA – Números coletados durante a pandemia revelaram o crescimento da tendência da utilização do carro próprio para locomoção nas cidades. Muito pelo justificado temor que os indivíduos têm de se expor ao contato com outros seres humanos nestes tempos de crise sanitária. Como você vê este movimento em um período no qual o compartilhamento de veículos e a busca pela ampliação da ‘mobilidade como serviço’ parecia ser a tendência mais forte em um contexto mundial?

RB – A pandemia trouxe uma transformação social sem igual. Todos nós estamos sendo impactados no nosso modo de vida e ainda seremos. Como será o ‘novo normal’? Vou trabalhar em escritório, só em casa ou em um modelo misto? Vou morar perto do trabalho ou morar longe em uma casa maior, mais confortável, mais barata. Posso levar e buscar meus filhos na escola. Essas e várias outras transformações impactam a indústria da mobilidade. A pandemia atacou todos os segmentos de mobilidade indiscriminadamente.

O mercado de táxis caiu 70%. A Uber nem podia imaginar que estaria ganhando mais dinheiro com o ‘Uber Eats’ do que corrida de carro. Todos caíram, houve muita devolução de carros, pessoas que tinham alugado carros e ficaram sem demanda. Então, de maneira concreta, observamos essa volta de interesse do consumidor pelo carro particular. Começou lá na China e chegou até aqui. Exemplo disso é o fato de que em novembro de 2020 foram vendidos mais carros usados e seminovos do que em novembro de 2019.

O carro compartilhado era tendência. Mas não sabemos como vai ser daqui pra frente. É como se a gente tivesse jogando um jogo de xadrez muito meticuloso, cada um pensando com muito cuidado no próximo movimento, aí a pandemia chacoalhou todo esse tabuleiro e as peças caíram todas, tendo de se reposicionar. Hoje, o fato concreto é que o consumidor voltou a ter interesse no carro particular.

NV – E como fica a indústria automotiva com essa, digamos, ‘pivotagem’ de estratégia do negócio motivada por uma mudança de comportamento do consumidor que ainda não sabemos se é pontual ou não. O que os profissionais envolvidos com o mundo automotivo podem esperar como tendência para 2021?

RB – A volta do interesse do carro individual aqui no Brasil esbarra em duas barreiras muito significativas. A primeira é a da manutenção: o custo para se manter um carro por aqui é muito alto, com IPVA, licenciamento e outras questões. O segundo é o do ticket de entrada: não tem carro zero aqui custando menos de R$ 40 mil, valor que, para nossa realidade, é bastante alto. Uma das alternativas que o mercado demorou, mas percebeu ao longo desta pandemia, é a criação de modelos de carro por assinatura, já que eles são capazes de tornar o carro mais acessível, eliminando as duas barreiras que citei anteriormente. Essa é uma tendência. A gente está observando uma série de empresas criando produtos visando ampliar o acesso ao carro particular a partir da assinatura.