Claudio Milan [email protected]
A eletrônica embarcada tem pouco mais de 30 anos no Brasil, contados a partir da chegada dos primeiros veículos com injeção eletrônica digital, em 1991 – o primeiro carro injetado do Brasil, o Gol GTi, lançado no final de 1988, tinha sistema analógico. Mas a injeção foi apenas a ponta do iceberg no processo da eletrônica embarcada nos veículos. “Depois disso foi uma enxurrada, com painel, imobilizador, ABS, airbag, transmissão automática, automatizada e controle de estabilidade, que era para se tornar obrigatório este ano, mas ficou para 2024”, relatou Clóvis Pedroni Jr., presidente da Alfatest e membro da AFER – Aliança dos Fornecedores de Equipamentos para Reparação na abertura de sua apresentação na edição 2022 do Seminário da Reposição Automotiva.
Hoje, a digitalização veicular avança como nunca se imaginou há 30 anos, quando surgiram os primeiros sistemas. Agora, porém, as consequências para o aftermarket independente podem ser devastadoras – e aqui não vai nenhum exagero. O tema da palestra de Pedroni Jr. foi “A informação técnica dos veículos caminhando para a conectividade e o movimento Right to Repair”. O conteúdo mostrou com clareza a importância de garantir aos consumidores o direto à escolha da oficina para consertar seu carro por meio da garantia de acesso dos reparadores às informações dos carros conectados. A última palavra em tecnologia automotiva à disposição dos consumidores são os veículos elétricos e os híbridos. E estes automóveis já nascem conectados. “Isso traz prós e contras. Mas é um desafio para quem está no mercado. É uma onda forte que na nossa visão vem mais rápido do que está parecendo, no Brasil com os híbridos e lá fora com os elétricos. Na Noruega, este ano a eletrificação já vai passar de 80%. E em 2025 o país proibirá a venda de veículos a combustão”, avisou.
Em junho, a Europa anunciou resolução que proíbe a venda de veículos com motores a combustão interna a partir de 2035 e, com isso, naturalmente a venda de eletrificados só vai acelerar a partir de agora. “Em 2021 foram vendidos na Europa 2,3 milhões de veículos elétricos – elétricos puros e híbridos plug-in, representando 17% de participação no mercado europeu. Agora, em 2022, o índice deve fechar em torno de 25%”.
Segundo o palestrante, no primeiro semestre de 2022 foram vendidos em todo o mundo mais de 3 milhões de veículos elétricos puros, quase 9% de participação. Já os híbridos plug-in atingiram a marca de 1 milhão, com 3,2% – totalizando assim mais de 12% das vendas globais. No Brasil, os eletrificados representam 2,4% e no último mês de junho superaram a marca de 100 mil unidades em circulação. Segundo estudo do Boston Consulting Group divulgado pela Anfavea e citado no evento pelo palestrante, teremos no país em 2030 de 12 a 22% de veículos eletrificados. “As vendas do Corolla sedã híbrido já representam 22%. E do Corolla Cross, quase um terço. Em 2035 o BCG prevê de 32 a 62% de veículos eletrificados no Brasil. Isso vai significar de 1,3 milhão a 2,5 milhões de unidades”.
Powertrain é responsável por quase 85% dos diagnósticos
As perspectivas trazidas por Clóvis Pedroni Jr. naturalmente levam a discussão ao futuro da reparação de veículos. A pergunta que não cala é: qual o impacto desta transformação disruptiva no aftermarket automotivo? O palestrante foi bem claro em sua exposição, utilizando dados da Roland Berger apresentados em setembro durante a Automechanika de Frankfurt, na Alemanha: “Eles avaliam que no mercado europeu, em 2030, de 53 a 82% dos veículos serão elétricos puros. Em 2035, praticamente 100%. Queda de 13 a 17% na venda de autopeças tradicionais, aquelas que todo veículo tem. Em 2040, o mercado adicional de peças específicas dos veículos elétricos receberá de 6 a 7 bilhões de euros. Em termos de receita, eles avaliam que até 2030 o mercado cresce e a partir daí fica estável, porque a queda de venda das peças tradicionais será compensada pela comercialização dos componentes específicos, que são mais caros”.
Clóvis Pedroni contou que desde 2017 a Alfatest vem coletando dados dos diagnósticos realizados por seus produtos – devidamente autorizada pelos clientes e em acordo com a LGPD. “Hoje nós temos um big data que contém 15,4 milhões de diagnósticos, 16,3 milhões de falhas e 820 milhões de parâmetros. Diariamente recebemos 20 mil diagnósticos novos no banco de dados. Com isso, conseguimos uma fotografia exata do que acontece com todos os veículos, por modelo, por região etc”.
De acordo com os dados apurados pela Alfatest, a injeção eletrônica significa, hoje, 81,5% dos diagnósticos realizados; ABS, 7,2%; transmissão automática, 2,8%; airbag, 2,5%; painel, 2,3%; imobilizador, 1,2%; e controle de carroceria, 1,2%. “O powertrain, que é injeção mais transmissão, 84,3%. Powertrain não dá problema no veículo elétrico. Motor elétrico praticamente não dá problema. E o veículo elétrico não tem transmissão. Então aqui o impacto é fenomenal, é a queda das peças gerais que citamos antes”, sentenciou Pedroni, que ainda encontrou mais fatores preocupantes para relatar: “As frenagens regenerativas. Praticamente não é preciso frear um veículo elétrico, é o ‘one pedal’ – é como carrinho de autorama, você acelera e ele vai, desacelera e ele freia sozinho transformando a energia cinética do veículo em energia elétrica. Com isso, você só usa o freio mesmo quando precisa de uma ação mais de emergência. Então, vai ter menos manutenção de freio – ABS, 7,2%”. Como no Brasil deve prevalecer o veículo híbrido, o fato de a maior parcela da frota circular nos centros urbanos fará com que esses carros operem na maior parte do tempo impulsionados pelo motor elétrico, reduzindo a manutenção. “Um cenário terrível para nós? Não é bem assim, novos sistemas mais sofisticados entrarão. E aqui a parte de tecnologia e acesso à informação se torna ainda mais importante”, acrescentou o palestrante.
Nuvens carregadas sobre o aftermarket
Como o veículo elétrico já nasce conectado, torna-se cada vez mais importante o acesso do mercado independente aos dados necessários para a reparação desses carros. “Não só elétricos, mas os conectados. Tem o sistema de gestão de bateria, gerenciamento de potência, controle do motor, freios com regeneração de energia e controle híbrido. O veículo híbrido é o melhor dos mundos para nós porque ele tem motor a combustão, motor elétrico, bateria, é o veículo mais sofisticado que existe, o mais complicado. Mas, por outro lado, ele é muito conectado”. O passo seguinte do palestrante foi trazer ao debate o veículo inteligente conectado, com uma nova avalanche de tecnologia que une a eletrificação a muita eletrônica embarcada nova. “O semiautônomo já é realidade no Brasil. Hoje qualquer carro novo médio já tem esse recurso pelo menos como opcional. E há sistemas de segurança que também estão chegando em todos os veículos: frenagem automática, alerta de colisão, controle de mudança de faixa. Temos, ainda, outra novidade: a fusão do veículo físico com o ambiente digital – e com o 5G isso vai crescer muito. É o veículo conectado com os outros veículos. O carro conectado com a infraestrutura, como os faróis de trânsito, até com as pessoas, via celular. O 5G permite coisas maravilhosas. Não é do dia para a noite, mas precisamos ver qual é o futuro. São rupturas que vão ocorrer”. E aí entra o terror dos reparadores: o diagnóstico remoto. “Com isso será possível fazer tudo remotamente. E as montadoras vão tentar fazer tudo remotamente dentro da casa delas. Podem ter certeza disso. Todos os dados do carro estarão na nuvem, e de preferência na ‘minha’ nuvem, no caso a nuvem das montadoras”.
Security Gateway já está presente Brasil
Em 2018, a Stellantis – que congrega as marcas Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën – começou a implementar um sistema de segurança para reduzir as possibilidades de acesso ao cérebro eletrônico de alguns de seus automóveis. “Uma caixinha, o security gateway. Um módulo entre o conector OBD e o sistema eletrônico do veículo. Tudo isso porque um carro da Jeep foi hackeado em razão de uma falha que havia no sistema de multimídia. Com essa falha o hacker executou comandos comprometedores, como acelerar, desabilitar ABS, frear. Isso abriu a caixa de Pandora. ‘Agora vão invadir nossos veículos’. Ao invés de melhorar os veículos, criaram dificuldades de acesso”, contou Clóvis Pedroni Jr. No Brasil, o SGw já está presente em modelos como Fiat Toro, desde 2019; Fiat Strada, Pulse e Ducato, 2021; Jeep Renegade e Compass, 2019; e Jeep Comander, 2022. “O que fizeram os fabricantes de equipamentos? Tiraram o cabo, colocaram outro e ‘pularam’ a caixinha. Eles descobriram. Agora, a caixinha está em local de difícil acesso. O que ficava perto do conector de diagnóstico e era fácil acessar foi para dentro do painel. É uma forma de evitar que o mecânico acesse os dados e faça o diagnóstico”, contou Pedroni. A liberação do acesso aos fabricantes de equipamentos e outros players do aftermarket automotivo independente vem sendo tratada pelas montadoras como mais um produto a ser comercializado. Essa é uma tendência global. “Isso não está disponível no Brasil, mas, para vocês terem uma ideia, um fabricante de scanner igual à Alfatest nos Estados Unidos teria que investir para acessar o sistema da Stellantis 25 mil dólares de taxa inicial mais taxa anual de 10,5 mil dólares e 8,5 mil por ano para o instituto que faz a homologação do equipamento. E toda oficina tem que pagar uma taxa também para acessar o veículo na nuvem. Além de ter uma internet de bom nível porque você vai fazer o diagnóstico acessando a nuvem o tempo todo”, detalhou Clóvis Pedroni.
O diretor-presidente da Alfatest contou que a Europa tem uma legislação muito forte no Right to Repair. Mas, em 2017, com o incidente envolvendo a Jeep e o hacker, as montadoras ficaram preocupadas com as questões envolvendo segurança e a legislação começou a ser afrouxada. “Isso hoje se tornou um problema, porque tudo o que se vai acessar elas alegam que lá há perigo e não pode. Está todo mundo muito preocupado”. Nos Estados Unidos, o estado de Massachusetts criou uma lei obrigado as montadoras a darem acesso aos dados para as oficinas mecânicas via conexão remota. As montadoras entraram na justiça e, segundo Pedroni, o processo está parado desde junho de 2021 na mão de um juiz. “Imaginem o lobby e a pressão política que existe por trás disso. A lei está suspensa, era um mau exemplo para os outros estados”. E no Brasil? Ainda que o problema por aqui exista em menor grau do que nos países em que os carros conectados já são maioria, o aftermarket está engajado no Right to Repair, movimento que se tornará cada vez mais importante para assegurar o direto de acesso dos reparadores às informações dos veículos e, mais do que isso, o direito de escolha do consumidor na hora de levar seu carro para um serviço de manutenção veicular. “Eu diria que hoje temos que pensar que é mais do que Right to Repair. É o Right to Connect. Você tem que ter acesso à conexão. Porque quando se coloca uma caixinha a gente consegue acessar o OBD, não é um firewall tão inteligente. Mas na conexão, se o veículo manda tudo pra nuvem você só vai ter acesso se invadir o servidor, o que, é claro, seria crime. E vou ser sincero: ninguém é muito otimista sobre a legislação porque estamos brigando com cachorro grande. Se a gente não chegar no dono do carro, não explicar que ele será obrigado a levar o carro para fazer a manutenção na concessionária para o resto da vida, o movimento não terá sucesso. Temos que lutar na legislação, na política, cooperação nacional e internacional, mas se o dono do veículo não pressionar e deixar de comprar o carro que não permite a manutenção fora da concessionária será uma luta inglória. Passarão como um rolo compressor sobre a gente. Hoje o mercado está maravilhoso, mas temos que pensar na perpetuação dos nossos negócios. E lutar pelo respeito ao consumidor”.