ABNT cria regras para a manutenção de carros eletrificados

O avanço da eletrificação no Brasil promete a impor uma série de transformações no pós-venda automotivo, especialmente no universo das oficinas independentes, em um futuro não tão distante assim. Só em 2024, o país registrou um crescimento de 89% na venda de veículos híbridos e elétricos, e a produção nacional já ultrapassa 126 mil unidades em 2025.

Em cerca de dez anos, essa frota em expansão chegará em massa ao período pós-garantia, colocando o setor de reparação diante de uma demanda inédita por padronização, segurança e capacitação técnica. É nesse contexto que surge a ABNT PR 1025, a primeira norma brasileira voltada especificamente à manutenção de veículos eletrificados. O documento estabelece requisitos de formação, procedimentos de segurança, protocolos de bloqueio de energia e diretrizes para atuação em sistemas de alta tensão.

Segundo o Presidente da ABNT, Mario Esper, o objetivo central da nova norma PR 1025 é proporcionar previsibilidade, minimizar improvisos e criar um padrão nacional alinhado às melhores práticas internacionais. Neste sentido, o fator segurança é um dos eixos estruturantes do documento. Afinal, sistemas de alta tensão presentes em híbridos e elétricos exigem cuidados técnicos muito superiores àqueles utilizados na manutenção de veículos tradicionais.

Com esse pano de fundo, a ABNT decidiu agir antes que a eletrificação atingisse seu ponto de inflexão no aftermarket. Definir agora um padrão técnico, enquanto boa parte da frota ainda está na garantia das montadoras, abre espaço para que oficinas, técnicos e instituições de ensino se preparem com antecedência. Em paralelo, a ação também reforça um movimento que já acontece em outros nichos do universo automotivo: o aumento da oferta de capacitação por parte de entidades como SENAI, IQA e associações do setor.

Em entrevista exclusiva ao NV, Esper detalha os motivos que levaram à criação da norma, explica o papel das montadoras e do setor de reparação no processo, comenta a necessidade de ampliar a qualificação profissional e fala sobre os pontos mais sensíveis da PR 1025 — incluindo segurança, impacto no aftermarket e até sua inserção no âmbito do debate sobre o “Right to Repair”.

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Norma da ABNT estabelece 3 níveis de especialização para reparadores

Nível 1 – Atuação exclusiva na reparação da parte mecânica ou do interior do veículo

Exigências – ter cursado pelo menos até o 5° ano do ensino fundamental e ter experiência de quatro anos como ajudante ou dois anos como mecânico automotivo.

Nível 2 – Além da parte mecânica do veículo, pode atuar com elétrica de baixa tensão (12 V) e dar suporte operacional a mecânico de veículo propelido a eletricidade

Exigências – ter concluído o ensino médio e curso profissionalizante na área de elétrica/eletrônica automotiva, bem como ter atuado como ajudante por dois anos ou como mecânico automotivo durante um ano.

Nível 3 – Pode cumprir integralmente as funções do Nível 2, além de atuar com elétrica de alta-tensão, remoção e instalação do motor e bateria de tração.

Exigências – ter concluído o ensino técnico ou superior na área de tração elétrica automotiva, bem como ter atuado ao menos um ano como mecânico automotivo de tração elétrica (alta-tensão e bateria automotiva).

Novo Varejo – Quais fatores levaram a ABNT a criar a norma?

Mario Esper – A eletrificação da frota avançou muito rápido no Brasil, e isso trouxe para o setor de manutenção uma série de desafios que ainda não tinham referência técnica clara. De um lado, a entrada acelerada de veículos híbridos e elétricos — só em 2024 o crescimento foi de 89%, e em 2025 a produção já passa de 126 mil unidades. De outro, a necessidade de preparar profissionais para lidar com sistemas de alta tensão com segurança. A PR 1025 nasce justamente para dar ordem a esse cenário: definir competências, orientar oficinas e estabelecer um padrão nacional alinhado às melhores práticas internacionais.

Novo Varejo – A questão da segurança pesou na decisão de elaborar a norma?

Mario Esper – Sem dúvida. Os sistemas de alta tensão e corrente contínua presentes em veículos eletrificados exigem cuidado técnico muito maior do que aquele que as oficinas estão acostumadas a encontrar na manutenção tradicional. O documento dedica uma parte importante a práticas de segurança, análise de riscos, uso correto de EPI e EPC e procedimentos de bloqueio de energia — pontos essenciais para evitar acidentes e proteger o profissional.

Novo Varejo – Como foi a participação das montadoras e do setor de reparação?

Mario Esper – O processo foi bastante colaborativo. A Comissão de Estudo reuniu montadoras, Anfavea, Sindirepa Brasil, Senai, IQA, especialistas de oficinas e centros de pesquisa.

Essa diversidade ajudou a construir um texto realista, que reflete tanto a visão industrial quanto às necessidades das pequenas e médias oficinas — que, aliás, foram mencionadas pelo próprio IQA como um dos grupos que mais precisam de orientação diante da eletrificação.

Novo Varejo – Mesmo com boa parte da frota ainda na garantia, o timing da norma é adequado?

Mario Esper – O momento é oportuno. A frota eletrificada ainda está entrando no mercado, o que permite que os profissionais se preparem antes de receberem esses veículos em grande volume fora do período de garantia. Ter um padrão técnico definido desde já evita improvisos lá na frente e dá segurança para oficinas que querem se adaptar com planejamento.

Novo Varejo – Existe alguma articulação para ampliar a oferta de capacitação no setor?

Mario Esper – A função da ABNT é estabelecer as diretrizes técnicas, e isso já cria uma base sólida para que entidades do setor, como o IQA, o Senai e associações especializadas, desenvolvam cursos e certificações. Na prática, isso já vem acontecendo em outras áreas. A PR 1025 oferece o conteúdo estruturado que essas instituições precisam para orientar suas formações — e o IQA já destacou publicamente que a demanda por qualificação é crescente.

Novo Varejo – Como a norma deve se fazer cumprir?

Mario Esper – As normas ABNT são voluntárias, mas ganham força quando o mercado as adota como referência — seja por exigência de seguradoras, fabricantes, certificadoras ou até por órgãos públicos que eventualmente decidam incorporá-las a regulamentos. No caso da manutenção de veículos eletrificados, a tendência é que a busca por segurança leve oficinas e profissionais a aderirem ao padrão, já que ele reduz riscos e traz previsibilidade ao serviço.

Novo Varejo – O “Right to Repair” pode afetar a aplicação da norma? Houve alguma sinalização das montadoras?

Mario Esper – A PR 1025 trata especificamente das competências e práticas necessárias para a manutenção segura. O tema do acesso a informações técnicas segue outra discussão, mas, durante a construção da norma, o setor automotivo participou ativamente e não houve qualquer resistência relacionada a isso. A tendência é que o mercado caminhe para ampliar o acesso responsável às informações, sempre com foco em segurança e qualidade — o que é totalmente compatível com o espírito da norma.

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