Lucas Torres [email protected]
O desenvolvimento da filosofia ESG no ambiente corporativo tem demonstrado que a adoção de práticas sustentáveis não se limita ao cumprimento da responsabilidade de uma empresa para além de seus objetivos em termos de resultado. Pelo contrário, o que está sendo descoberto é que o compromisso em ser social, ambiental e financeiramente sustentável acaba se traduzindo diretamente nos indicadores de um negócio. Um dos exemplos desta ligação está na política de bem-estar no ambiente de trabalho. Afinal, de acordo com pesquisa recente da consultoria Robert Half, 89% das companhias reconhecem que bons resultados têm ligação direta com a motivação e a felicidade das pessoas. Embora direcionadora, essa conclusão é também um sinal de alerta para as empresas do varejo – já que o setor foi apontado pela Universidade de Harvard como um dos que gera maior infelicidade entre seus profissionais. Por isso, com o objetivo de compreender melhor a relação entre felicidade e produtividade, bem como identificar os gargalos a serem solucionados pelas organizações para aumentar o nível de satisfação e motivação de seu corpo de colaboradores, conversamos com a especialista em Psicologia Positiva e gerente das áreas comercial e de serviços da Vetor Editora, Anna Maria Buccino. A empresa é voltada para pesquisa, desenvolvimento e geração de conhecimento por meio da publicação de testes psicológicos, instrumentos multidisciplinares e livros destinados às áreas de psicologia, fonoaudiologia, neuropsicologia, pedagogia, psicopedagogia, educacional.
Novo Varejo Automotivo – Um colaborador mais feliz significa necessariamente um colaborador que produz mais e entrega melhores resultados?
Anna Maria Buccino – Para responder a essa questão, peço licença para brevemente trazer um conceito de felicidade, sob o olhar da Psicologia Positiva, de modo a tangibilizar, identificar, mensurar, fazer com que as pessoas e organizações tenham consciência do que buscam, para tomarem sua responsabilidade na construção dessa felicidade e identificá-la quando alcançada. Felicidade não diz respeito aos discursos vazios, experiências pessoais bem-sucedidas, falsas imagens sorridentes de internet. Do ponto de vista da Psicologia Positiva, felicidade é ciência, com resultados baseados em evidências. É um processo de trabalho interno, olhar para dentro de si, olhar para dentro de uma organização e identificar as potencialidades, encontrando maneiras de usá-las em momentos bons e ruins.
NVA – Quais são as potencialidades do colaborador e da organização?
AMB – Identificar nossas potencialidades desperta para o que funciona melhor em nós, que nos orienta a um caminho de autorrealização, de renovação de energia, que vai contribuir para um ambiente psicologicamente seguro, estimulando o autodesenvolvimento, a colaboração, a responsabilidade. Tudo isso nos leva ao caminho do crescimento. E, quando começamos a viver isso, melhoram nossa produtividade, nosso resultado e nossa sensação de felicidade. Importantes estudos têm sido realizados tanto por parte da Psicologia, da Psicologia Positiva, quanto por parte das Neurociências. E esse referencial em áreas distintas é fundamental para compreendermos a felicidade. Trazendo uma visão do todo que deve ser observado. Um olhar do ponto de vista social, psicológico e biológico, e das relações entre elas. Algumas das instituições que colaboram para essas pesquisas são: International Positive Psychology Association (IPPA); Center for Positive Organization, da Universidade de Michigan; Laboratório de Psicologia Positiva nas Organizações e no Trabalho (LAPPOT), da Universidade Federal de Santa Catarina; Instituto Gallup; VIA Institute; Associação Brasileira de Psicologia Positiva (ABP); universidades de Harvard, Yale e Warwick.
NVA – Como você vê o amadurecimento da pauta do bem-estar no trabalho no Brasil em comparação com outros países do mundo?
AMB – É inegável que o mundo pós-pandemia, incluindo o Brasil, viveu e vive uma transformação com relação ao tema de felicidade, bem-estar e saúde mental. O que se observa é uma crescente busca por criar debates mais consistentes e profissionais. Houve uma abertura maior para que as pessoas pudessem falar sobre esse tema, que no passado quase não podia ser comentado dentro de uma empresa. No Brasil a pauta tem se tornado bem relevante e vemos já muitas empresas incluindo o assunto no seu dia a dia. Em um levantamento realizado pelo Serviço Social da Indústria, com 200 gestores do segmento, 81% disseram que a melhoria contínua do bem-estar dos colaboradores faz parte de suas iniciativas. No meu dia a dia, na área comercial da Vetor Editora, que desenvolve instrumentos e serviços para avaliação psicológica, vemos um aumento de psicólogos e organizações em busca de materiais e serviços que apoiem projetos na área do bem-estar, qualidade de vida, clima organizacional e avaliação dos riscos psicossociais, que envolvem um olhar do ponto de vista de necessidades sociais, emocionais e de saúde mental. Avançamos, mas ainda há muito a ser feito no país. Se olharmos para o número de trabalhadores informais que não contam com nenhum tipo de apoio no que tange a esse tema, podemos ter uma mínima ideia do que temos a desenvolver. Não é simples, dá trabalho, inclusive pela necessidade de mudança de mentalidade, tanto por parte política, como de empresas e do próprio colaborador. Todos têm uma responsabilidade nesse ponto.
NVA – Existe um gap entre o bem-estar no trabalho quando comparamos as grandes empresas e as PMEs?
AMB – No levantamento realizado pelo Serviço Social da Indústria, das 200 empresas pesquisadas, 55% eram de pequeno porte, 25% de médio e 20% grandes indústrias. Acredito que o GAP maior esteja mais relacionado à mentalidade da liderança. A Organização Mundial de Saúde (OMS), em seu último relatório sobre saúde mental, reforça essa questão quando diz que é como a liderança entende e está engajada em tratar o tema saúde mental que vai determinar a qualidade do desenvolvimento de ações voltadas para isso. A liderança é responsável pela cultura organizacional direcionada a cultivar políticas de bem-estar. Nesse sentido, o treinamento das lideranças é fundamental para o desenvolvimento das habilidades e do conhecimento que levarão à prevenção, promoção e apoio ao bem-estar dos colaboradores. A Vetor Editora possui instrumentos que podem colaborar nesse desenvolvimento, identificando o perfil comportamental dos líderes para que possam entender quais os pontos a serem desenvolvidos. Outra questão importante é o entendimento das empresas sobre a importância de uma área de Recursos Humanos, voltada para o colaborador e não somente para os processos de departamento pessoal. Nesse sentido, as grandes empresas apresentam certa vantagem.
NVA – Quais setores da economia brasileira estão, digamos, mais avançados na criação de uma cultura de bem-estar no trabalho?
AMB – No último ranking das 150 melhores empresas para trabalhar no Brasil, pelo Great Place to Work, que contou com a participação de quatro mil empresas inscritas, 90% delas indicaram que adotaram práticas relacionadas ao bem-estar e saúde mental. Entre os destaques desse quesito, a maioria é da área de tecnologia. Outra pesquisa conduzida pela Pipo Saúde e HSM indicou que 26,1% das empresas participantes investem em um pacote de benefícios completo, que incluem bem-estar físico e mental. Dentre essas empresas, o segmento que apareceu com maior representatividade foi o de tecnologia, seguido por serviços e educação.
NVA – Por que o varejo está entre os setores que mais sofrem com a infelicidade de seus colaboradores?
AMB – O varejo sofre uma pressão mais forte por metas, crescimento, qualidade e produtividade. Além do fantasma da tecnologia, que ronda o dia a dia, com inovações que ameaçam substituir o trabalho humano e tomar empregos. Um líder de varejo tem que dar conta da alta rotatividade e de afastamentos de colaboradores por burnout ou outras doenças. Quem trabalha no varejo, muitas vezes não tem final de período. Quando entrega as metas de um dia, no dia seguinte começa do zero. Termina uma semana com bons resultados, a semana seguinte começa do zero. Isso vale para metas quinzenais, mensais, anuais. Muitas vezes não é reservado tempo para celebração, para olhar para os resultados positivos, para as conquistas. Além disso, o colaborador do varejo que lida diretamente com clientes, lida com tipos diferentes de pessoas. Alguns clientes tendem a ser rudes, trazer muitas questões e reclamações. Ambientes extremamente competitivos, onde as pessoas podem se sentir solitárias, sem ter com quem contar, compartilhar. Em alguns casos não é possível nem demonstrar qualquer tipo de vulnerabilidade, por medo de sofrer retaliações. Por tudo isso, a infelicidade é uma sombra no dia a dia dos trabalhadores do varejo.
NVA – Como a empresa pode balancear a necessidade de buscar resultados com o cuidado com o bem-estar de seus colaboradores?
AMB – A pressão por vendas é um dos fatores que podem contribuir para essa sensação de infelicidade no dia a dia de um colaborador. O assunto é relevante, tanto que o Retail’s Big Show, maior evento do varejo do mundo, incluiu a pauta do bem-estar em sua agenda e sugere como uma estratégia para buscar equilíbrio entre a necessidade de resultados e o bem-estar o foco das empresas em seus colaboradores. O tom dessa estratégia pode ser percebido na fala de Steven Williams, CEO da PepsiCo Foods América do Norte, durante apresentação no evento: “O nosso modelo de negócio vai além dos produtos nas prateleiras. São pessoas que colocam eles lá. São pessoas que transportam nossos produtos. São pessoas que atendem os consumidores nas lojas. E precisamos motivar e cuidar de todas essas pessoas”. Olhar o colaborador como ser humano pede um olhar atento para toda a rotina desse profissional, não somente dentro do horário de trabalho, mas fora dele. Quando o colaborador percebe que está sendo visto, que ele existe para aquela empresa, que o que ele sente importa, que o que ele é importa, que o que ele sugere importa, começa a se engajar mais, entende mais o seu papel. Quando a visão é compartilhada, os objetivos são claros e os comportamentos esperados são claros, o colaborador se conecta com a organização e coloca sua energia para que melhores resultados aconteçam.
NVA – Por fim, gostaria que você citasse boas práticas que podem ser adotadas pelas empresas para criar um ambiente saudável para seus colaboradores.
AMB – Algumas iniciativas que podem ser significativas são:
• ·Criar programas que estimulem as pessoas a entenderem cada vez mais a importância do cuidado com a saúde física e mental.
• ·Oferecer um ambiente psicologicamente saudável, que permita a expressão de ideias, pensamentos, dúvidas e estimule o compartilhamento de conhecimento.
• ·Incentivar a colaboração entre as pessoas, entre os departamentos, entre todos os stakeholders.