Importadores brasileiros de componentes automotivos já preveem dificuldades para atender
demanda após o fim dos estoques
Lucas Torres [email protected]
Primeiro epicentro da pandemia da covid-19, a China foi também um dos países que mais brevemente controlaram os impactos sanitários do novo coronavírus entre os anos de 2020 e 2021 – período em que o mundo conviveu com o auge da crise. Nas últimas semanas, no entanto, enquanto boa parte do planeta já começa a experimentar um cenário real de pós-pandemia, sobretudo no que diz respeito à retirada das restrições de circulação, o gigante asiático tem se visto na obrigação de voltar a implementar medidas em prol da contenção do vírus. Desde o início do mês de março, megalópoles chinesas, como as cidades de Pequim e Xangai, estão enfrentando medidas rígidas de distanciamento social. A segunda – casa de cerca de 25 milhões de cidadãos – decretou lockdown completo, com direito a drones patrulhando as ruas até que a taxa de 10 mil novos casos por dia seja reduzida.
De acordo com cálculos da CNN, o conjunto de ações implementadas pelo governo chinês já afeta 165 milhões de pessoas espalhadas por ao menos 27 cidades do país. A postura de tolerância zero da cúpula comandada pelo presidente Xi Jinping tem chamado a atenção de especialistas. Afinal, a China conta com 87,9% da população vacinada e um número considerado baixíssimo de mortes ocasionadas pela covid-19. Afinal, qual é a razão para tanto rigor justamente agora, quando o mundo solta as amarras das restrições e parece caminhar rumo à volta da normalidade? Essa é a pergunta que ainda não foi completamente respondida, mas que intriga a todos nós.
Restrições na China impactam economia mundial
Muitas foram as especulações surgidas desde que os chineses adotaram as restrições visando diminuir a incidência de novos casos de covid-19. Entre elas, teorias sobre possíveis novas mutações do vírus foram algumas das que tiveram mais destaque. Questões conspiratórias à parte, porém, o que especialistas apontam como concreto é o inevitável impacto que a situação terá na cadeia produtiva global.
Estudiosos no âmbito da geopolítica internacional, como o professor da ESPM Leonardo Trevisan, apontam para o fato de Xangai ser uma área portuária chave para o comércio exterior como uma questão que merece preocupação de países como o Brasil – tanto no âmbito das importações quanto no das exportações.
Neste sentido, vale destacar que o porto da megalópole chinesa foi – segundo a BBC – responsável por 17% do tráfego de contêineres e 27% das exportações do país ao longo do ano de 2021.
Analisando um possível efeito rebote da crise sobre o abastecimento de produtos para a reposição automotiva brasileira, o head do After.Lab e expert em aftermarket automotivo, Marcelo Gabriel, destaca que o fato de vivermos em uma economia global nos coloca automaticamente em contato com os impactos causados pelos movimentos de um país de tamanha representatividade no cenário internacional, caso da China.
Para Gabriel, mesmo questões não ligadas a situações esporádicas – como os lockdowns – podem ser percebidas diretamente na economia mundial. “Se a economia chinesa cresce 2% a 3%, isso já gera um impacto absurdo no mundo. Afinal, este índice já representa o PIB Brasileiro – se analisarmos proporcionalmente, já que o Brasil tem cerca de 220 milhões de habitantes e a China já conta com uma população de 1,4 bilhão”, analisou.
Chineses são protagonistas na geografia das importações brasileiras de autopeças
Que a China é um dos principais players da economia mundial, não há dúvida. Esta posição é corroborada, ano a ano, por números que apontam a nação como dona do segundo maior PIB global (US$ 17,5 trilhões) e principal país exportador (US$ 2,654 trilhões em 2021). O impacto generalizado para a economia em todo o mundo, porém, ganha ares de maiores preocupações para o aftermarket automotivo brasileiro em face da representatividade do gigante asiático nas importações brasileiras de autopeças – seja para os importadores de componentes para o aftermarket, seja para as grandes indústrias que dependem do fornecimento asiático para complementar o portfólio local.
Segundo dados divulgados no último relatório do Sindipeças, o território chinês é a principal origem das importações de autopeças no Brasil – com larga vantagem sobre o segundo colocado, os Estados Unidos (EUA). Ao longo do primeiro bimestre de 2022, por exemplo, as empresas aqui estabelecidas importaram US$ 559,5 milhões em autopeças chinesas – montante US$ 237,9 milhões superior ao adquirido junto aos EUA e que representa significativos 19% do total importado pelo Brasil no período. O mesmo relatório, aliás, apresentou outro número tão ou mais significativo do que a atual representatividade dos produtos vindos da China no nosso mercado de reposição.
De acordo com o material, a presença das autopeças chinesas no nosso território passa por ampla expansão – crescendo 57,3% nos dois primeiros meses de 2022 no comparativo com o mesmo período do ano passado. Para completar a fotografia que projeta um impacto significativo dos lockdowns em grandes centros produtivos chineses por aqui, é preciso ainda compreender a magnitude da dependência da indústria automotiva brasileira em relação às importações. Conforme números do Sindipeças, a balança comercial brasileira apresentou um déficit de US$ 3 bilhões no decorrer do primeiro trimestre de 2022 – dado que posiciona, acima de tudo, o Brasil como um país que é mais comprador do que produtor e oferece uma noção da importância de um mercado como o chinês, que representa quase 1/5 de tudo que importamos.
Importadores brasileiros preveem desabastecimento
Os números e as análises indicam que as medidas sanitárias adotadas pela China visando conter o avanço de novos casos de covid-19 no país terão impacto significativo na economia brasileira como um tudo – assim como no aftermarket automotivo. Para oferecer ao mercado uma posição mais conectada com a prática, e menos no campo da conjectura, porém, é fundamental ouvir as expectativas e a percepção daqueles que são dois dos principais responsáveis pela importação de autopeças para o mercado de reposição no Brasil. Pensando nisso, nossa reportagem conversou com os executivos Roland Setton, da Isapa, e Antonio Carlos de Paula, da Luporini. Veja a seguir o cenário que os executivos desenham para os próximos meses.
Novo Varejo – Considerando todas as origens das peças que vocês importam, os produtos vindos da China representam qual percentual?
Antonio Carlos de Paula – O percentual de produtos comprados na China é representativo em nosso negócio, com participação de aproximadamente 60% do volume das vendas. Roland Setton – Dentro de todo o escopo de produtos que importamos, as autopeças chinesas representam 70% do total.
Novo Varejo – Existem peças que vêm exclusivamente da China ou, em caso de escassez, é possível recorrer a outros mercados para manter o abastecimento do mercado local?
Antonio Carlos de Paula – Sempre é possível desenvolver fornecedores em outros mercados. Mas, nem sempre o tempo de identificação, aprovação, validação é o adequado para atender a demanda pontual.
Roland Setton – É complicado. Sempre estamos em busca de novos fornecedores, em diferentes mercados, para atender a demanda dos nossos clientes. No entanto, essa prospecção não ocorre de maneira emergencial. É inviável suprir uma escassez de produtos chineses de um dia para o outro.
Novo Varejo – Vocês têm tido alguma dificuldade de importar da China nas últimas semanas? Os lockdowns do país afetaram de alguma forma a oferta de produtos? Antonio Carlos de Paula – Uma vez que temos fornecedores parceiros de longa data, bem como a grade de importação dos produtos, muda pouco, não temos grandes problemas. Porém, em momentos como o atual de lockdown pontual, acabam acontecendo atrasos no recebimento dos embarques. Isto normalmente é compensado pela manutenção de estoque mais elevado dos itens de maior giro.
Roland Setton – Conseguimos construir um estoque importante nos últimos meses e não teremos uma dificuldade com escassez, provavelmente, nos próximos 60 dias. Depois disso, no entanto, deveremos, sim, sofrer com a falta ou atraso de produtos. Principalmente pelo fato de eu não ver esta situação chinesa se resolvendo de maneira tão rápida. Essa nossa expectativa mais cautelosa já nos levou a, inclusive, avisar alguns de nossos clientes sobre uma possível escassez a partir da metade do ano.