Saiu faísca na eletrificação

Existe já há algum tempo o consenso de que o processo de eletrificação da frota brasileira se dará por meio dos carros de propulsão híbrida, em que o etanol é apontado como o agente garantidor do cumprimento das metas de descarbonização. Se formos adotar este consenso como verdade absoluta, causa certo espanto o fato de que, segundo dados mensais da Associação Brasileira do Veículo Elétrico, os carros 100% elétricos (BEV – Battery Electric Vehicle) vêm liderando as vendas há mais de um ano. Estariam as previsões equivocadas? O espaço disponível para este texto não permite análise mais aprofundada sobre a questão.

Mas, superficialmente, consideremos alguns fatores na equação que vem sendo construída pelo mercado consumidor, em revelia ao consenso: o brasileiro é – e as pesquisas confirmam – um povo altamente receptivo às novas tecnologias, inclusive àquelas ditas disruptivas, como o carro 100% elétrico; a plataforma híbrida é a preferida pelas montadoras que aqui atuam, com gigantesca força de lobby e pouco ou nenhum interesse em introduzir os BEVs em nosso mercado; essa postura, digamos, conservadora, tem deixado espaço para novas marcas chinesas, cheias de entusiasmo, tecnologia e marketing agressivo; embora o governo tenha retomado a taxação das importações de carros elétricos em escala progressiva, a alíquota atual de 18% é bastante atraente para a composições dos preços finais no varejo. Resultado: 82% dos veículos eletrificados em circulação no Brasil são chineses. É o maior índice de participação de mercado no mundo – globalmente a média é de 76%, segundo estudo do instituto britânico Rho Motion.

E foi exatamente aí que saiu faísca na guerra da eletrificação. Cientes de seu despreparo para dar uma resposta imediata na forma de produto, as montadoras associadas à Anfavea dispararam o alerta vermelho e voltaram a apelar para o bom e velho protecionismo. A associação nacional que representa os fabricantes de veículos divulgou nota oficial pedindo elevação imediata da alíquota de importação dos elétricos para 35%, índice previsto para vigorar a partir de julho de 2026. De bate-pronto, a Abeifa, a associação dos importadores de veículos, reagiu cobrando previsibilidade na política tarifária – e não há como negar que isso é fundamental, mudar as regras do jogo com a bola rolando é sempre uma atitude criticada por todos, inclusive pelas próprias montadoras quando debatem a renovação das políticas setoriais automotivas do país.

Nosso último editorial tratou em parte do processo de desindustrialização no Brasil e das nefastas consequências do crescimento de nossa dependência por produtos importados. Conceitualmente muito do que a Anfavea diz contempla essa questão – e de fato, a alíquota de 18% vigente hoje é desproporcionalmente baixa. Há, portanto, méritos inegáveis na luta pela preservação do parque industrial de nosso país, gerador de empregos, de tecnologia, impostos e riquezas.

Por outro lado, é fundamental que as montadoras estejam em sintonia com o que pede o mercado consumidor e não caiam nas armadilhas da acomodação que almeja ditar as regras do jogo. Não cola mais. Ainda vivemos numa era de comércio global – apesar das ameaças vindas dos Estados Unidos. Isso significa liberdade de escolha. Muita gente sente saudades, mas o tempo das “carroças” ficou para trás e não pode, e nem vai, voltar

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